Desde seu lançamento em junho, a minissérie da Netflix Sweet Tooth vem sendo comentada por seus paralelos com o momento turbulento. A recente adaptação da HQ, publicada pelo selo Vertigo da DC, foi produzida por Robert Downey Jr. e carrega consigo a fama de uma das graphic novels de maior sucesso dos últimos anos. Não haviam dúvidas do sucesso do programa, pelo menos até a Covid-19 explodir e mudar a configuração esperada, o plot da trama preocupou os produtores e criadores por conta da situação delicada que ainda estamos vivendo.
Na obra de ficção acompanhamos um mundo pós-apocalíptico onde uma pandemia destrói grande parte da humanidade e, ao mesmo tempo, cria bebês híbridos entre humanos e diferentes tipos de animais. Apesar de ter seu piloto filmado em 2019 e seu roteiro finalizado anos antes, a ambientação da série se relaciona diretamente com pandemia que vivemos no mundo real nos últimos quase dois anos. Em seu enredo acompanhamos Gus, um híbrido de humano com cervo em uma história de aventura em busca da verdade sobre a sua mãe enquanto se depara com obstáculos e pessoas mal intencionadas.
Diversos elementos próximos do que vimos nas notícias recentes também aparecem de forma crítica na obra. Em ambas, podemos, por exemplo, ressaltar as fake news que existem em torno de uma possível criação do vírus em laboratório: ocorre tanto na obra quanto na vida real, em que recentemente foi desmentido em investigação conduzida pelos EUA[1]. Entretanto, ainda é tema para negacionistas, se tornando uma das grandes fontes para a xenofobia crescente contra pessoas do Leste Asiático. Na obra ficcional, também existe uma busca por apontar culpados para o surgimento do vírus, e como é fácil de se imaginar, o alvo se tornou o outro resultado do desastre que assolou o planeta, as crianças híbridas. Esse ódio, estado de pânico e paranóia de um mundo em caos é direcionado às crianças híbridas e resulta em uma caça, o extermínio de todas é um dos objetivos políticos do governo, seu exército, chamados de “Os Últimos Homens” e de grupos mercenários que lucram com as capturas e abates.
Da mesma maneira, um mundo que vive a pandemia é fonte de grande solidão, as pessoas vivem com medo e isoladas uma das outras. Gus e seu pai vivem em uma área florestal completamente fechada, a criança não tem contato com outros seres humanos, não conhecendo nada do mundo além de uma área delimitada por seu pai. Após a morte repentina de seu pai, Gus se vê completamente sozinho em isolamento por conta do vírus, melancolicamente precisando se cuidar sozinho. Durante o Covid-19 todos viveram meses longe das pessoas amadas e sem contato físico com outras pessoas, segundo a BBC[2], o brasileiro é o povo que mais sofreu com a solidão na pandemia, um fator determinante na condição de saúde mental de diversas pessoas.
Entretanto, a série possui um tom de esperança, afinal, é sobre a jornada de uma criança. Parte de sua ambientação é dentro de ambientes dominados pela natureza, um ponto em que os autores são um pouco mais ácidos na HQ, já que a pandemia fictícia foi também fonte para a recuperação do planeta. Apesar de viverem isolados de qualquer outra pessoa, Gus e seu pai estão completamente conectados com o natural, produzindo seus alimentos e cuidando de todo o ambiente em volta da casa em que vivem. Da mesma maneira, o contato com o planeta foi uma válvula de escape bem comum durante a pandemia no mundo real[3].
Os autores também são bem críticos quanto a desigualdade social, sendo muito clara e ampliada em momentos de crise. Em Sweet Tooth, os mais ricos possuem um bairro inteiro fechado com sistemas de alto padrão de segurança e testagem onde todos podem viver uma vida social normal. Ademais, medidas drásticas são tomadas em caso de infecção de algum dos moradores, não há espaço para riscos. Por outro lado, com menos condições de lidar com a pandemia e o fim da economia como conhecíamos antes, os mais desfavorecidos que sobreviveram ao vírus precisam se expor a condições inadequadas em busca de manter suas vidas. No mundo real, o mesmo efeito é observado nas camadas sociais, as populações mais afetadas pelo Covid-19 são parte da classe trabalhadora periférica, moradores de rua e comunidades[4].
A série Sweet Tooth possui uma aura animadora, mas sem deixar de lado suas fortes críticas à como uma pandemia sem as políticas de saúde pública adequadas pode se tornar uma catástrofe humanitária. O “neoliberalismo epidemiológico” abordado pela professora Deisy Ventura et al. em seu artigo de 2021 (p. 2219[5]) é a ideologia predominante do mundo de Sweet Tooth. Dessa forma, ao condenar a ideia da sobrevivência dos mais fortes o roteiro utiliza os mercenários e o governo tirânico que busca acabar com todos os humanos híbridos como figuras de opressão. Nesse mesmo sentido, o tema da banalização da morte, também abordado pela professora e seus colegas, é extremamente presente dentro do núcleo de pessoas abastadas, onde as vidas valem muito pouco. E assim, mundos pós-apocalípticos na ficção podem parecer improváveis, mas são bem próximos da nossa realidade, especialmente se tratando das políticas governamentais perversas na administração da pandemia.
Referências
[1] EUA conclui que covid-19 não foi desenvolvida como arma biológica | Exame
[2] Brasileiro é povo que mais sente solidão na pandemia, aponta ranking – BBC News Brasil
[3] Contato com a natureza reduz estresse durante pandemia • Summit Saúde (estadao.com.br)
[4] A pandemia expõe de forma escancarada a desigualdade social – CLACSO
[5] Ventura e Bueno (2021). De líder a paria de la salud global: Brasil como laboratorio del “neoliberalismo epidemiológico” ante la Covid-19, Foro Internacional, Colegio de Mexico.
Muito interessante o paralelo, Filipe! A arte a cultura, mesmo que de forma não intencional, são uma ferramenta poderosa para aproximar a população alheia à academia de temas importantes como a gestão da saúde pública, a pandemia e seus efeitos. Assistindo a série, algumas das reflexões que você trouxe já tinham me saltado à mente, porém ainda não havia pensado em outras, como a crescente relação xenofóbica que vemos com os híbridos nas obras, e também com populações asiáticas na vida real, como temos visto, infelizmente, em diversos relatos de ataques e preconceitos a essa população desde que a pandemia teve início.
Ótimas conexões, Filipe! Acho interessante como a história da série, mesmo tendo sido idealizada bem antes do surgimento da pandemia atual, conseguiu trazer aspectos tão realistas em comparação com o que vivemos hoje. Acredito que as críticas trazidas pela obra são bem relevantes, em especial nessa questão de que algumas vidas valem mais que outras – uma problemática muito presente em nossa sociedade.