À primeira vista, a atitude de alguns empresários de conceder doações milionárias a projetos sociais parece louvável, afinal ninguém é formalmente obrigado a ajudar outras pessoas, por maior que seja sua fortuna ou pior que seja a situação do outro. Entretanto, quando analisamos tal prática, percebemos que ela dificilmente é conduzida puramente por finalidades altruístas. Em geral, a filantropia realizada pelas grandes empresas está associada ao desejo de construir uma melhor imagem perante seus consumidorese de evitar crises no sistema capitalista, o qual garante o seu poderio econômico(Birn e Richter; 2018). Neste contexto se inserem duas fundações que muito influenciaram a agenda de saúde global: a Fundação Rockfeller (FR) e a Fundação Bill e Melinda Gates (FBMG), cujas trajetórias foram descritas e analisadas pelas autoras Anne-Emanuelle Birn e Judith Richter no artigo “Filantropo-capitalismo estadunidense e a agenda da saúde global: as fundações Rockefeller e Gates, passado e presente” (2018), cujas conclusões em pretendo resumir nesse texto.
A Fundação Rockfeller surgiu no início do século XX com o objetivo de melhorar a imagem negativa associada aos negócios do rico empresário do petróleo John D. Rockefeller. Ela desenvolveu ao longo de sua história diversos projetos voltados à promoção da saúde internacional e de outras áreas de interesse público, como Medicina, Educação, Ciências Sociais, Agricultura e Ciências Naturais. No campo da saúde suas principais iniciativas estão ligadas à utilização de medicamentos para o controle de doenças e a promoção da cooperação intergovernamental. Tendo influenciado na criação de diversas organizações internacionais nesse campo, com destaque à Organização Mundial de Saúde, que a sucedeu em seu papel internacional na saúde, no entanto a FR deixou como legado a busca contínua pela institucionalização da saúde pública e o viés para a tecnociência, segundo Birn e Richter (2018).
A Fundação Bill e Melinda Gates, por sua vez, é hoje a maior organização filantrópica envolvida na Saúde Global, segundo Birn e Richter (2018). Ela surgiu nos anos 2000, em um momento de arrefecimento dos investimentos dos países na OMS. Tendo como foco a governança global em saúde para o enfrentamento de crises, como as relacionadas a HIV/AIDS, Tuberculose e Malária. Apesar das diversas semelhanças entre a FR e a FBMG, como a aplicação de modelos de negócio às suas iniciativas, a abordagem tecnológica e o foco no controle de doenças, existe uma diferença relevante entre elas. Enquanto a FR acreditava no potencial da saúde pública e por isso investia nas organizações públicas nacionais e intergovernamentais, a FBMG desafia a capacidade destas para esse trabalho, se apoiando em seus parceiros privados, agindo com base no conceito econômico de mitigação de riscos. Além disso, devido a esse fator, é possível identificar a presença de conflitos de interesse nas ações da FBMG no que se refere à sua relação com parceiros privados. Por exemplo, o investidor Warren Buffett é o único doador da fundação, além da Microsoft, no entanto 50% do orçamento da FBMG é destinado à compra de medicamentos da Berkshire Hathaway Holdings que pertence a Buffett (Birn e Richter; 2018)., assim parte do valor doado retorna a sua origem. Além disso, a organização é acusada de adquirir alimentos e bebidas de empresas poluidoras e insalubres.
Existem também diversas outras críticas ao filantrocapitalismo da FR e da FBMG, a primeira delas é que em diversos países as doações corporativas e privadas são passíveis de dedução fiscal àqueles que as realizam, o que retira dos cofres públicos montantes que poderiam ser utilizados para as iniciativas do governo, em prol de organizações cuja gestão não é democrática. Além disso, apesar dos investimentos dessas organizações em vacinas e remédios, muitas doenças têm sua origem nas condições sociais das populações, cuja causa é a desigualdade social, assim a ação dessas organizações combate o efeito, mas não a causa do problema real. E, por fim, apesar do déficit de saúde pública nos países em desenvolvimento, a maior parte dos recursos da FR e da FBMG foi aplicada nos países desenvolvidos, por exemplo, segundo Birn e Richter (2018), em 2016 três quartos do orçamento do Programa Global de Saúde da FBMG foi para 60 organizações, das quais 90% estavam situadas em países desenvolvidos.
A discussão realizada acima nos leva a crer que as críticas feitas pelo escritor e revolucionário, Friedrich Engels (1845), à caridade da burguesia no século XIX ainda são atuais. Para o autor, a filantropia se tornou necessária em razão da própria ação da acumulação realizada pelo sistema capitalista e os empresários são capazes de devolver aos pobres através da caridade apenas 1 centésimo daquilo que deles retirou. Além disso, para ele a caridade dos ricos é parte dos negócios e não está ligada a qualquer ato de boa vontade.
Referências:
Birn, Anne-Emanuelle; Richter, Judith. Filantropo-capitalismo estadunidense e a agenda da saúde global: as fundações Rockefeller e Gates, passado e presente. Tradução do título original em inglês por Camilo Darsie. 2018.
Engels, Friedrich. A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra (Capítulo: A atitude da burguesia em face do proletariado). Tradução B.A. Schumann. Supervisão, apresentação e notas de José Paulo Neto. Editora Boitempo. São Paulo, 2018.
Dupas, Gilberto. Filantropia e capitalismo global. Publicado em 02/11/2006. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0211200609.htm>. Acessado em: 09/11/2021.