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O caminho das hierarquias em Duna, de Leonardo Derenze

28 novembro 2021

O caminho das hierarquias em Duna, de Leonardo Derenze

Duna (2021) trata da trama política do conflito entre casas aristocráticas que compõe um sistema imperial. Desembocadas na mudança do controle de um território do império, essas tensões nos são apresentadas através do protagonista Paul (Tymothée Chalamet) em sua jornada messiânica em liderar o povo oprimido do planeta Arrakis. Mas Duna tem pouco a dizer sobre Arrakis e sua população nativa, subjugada por conta do interesse imperial sobre a “especiaria”, um material raro e muito valorizado, encontrado e extraído em abundância em Arrakis. Apesar da obra original ter sido escrita em um momento de contestação política ao imperialismo norte-americano – na contracultura do fim dos anos 1960 -, a recente adaptação do diretor Dennis Villeneuve não se interesse pelas hierarquias políticas do sistema imperial da “especiaria”. Perde-se uma oportunidade de comentar outros sistemas hierárquicos que se tornaram latentes com a pandemia da COVID-19: o sistema global da produção de vacinas e as hierarquias que o fazem operar segundo uma lógica imperial.

O desinteresse pelo espaço e lugar de Arrakis é logo perceptível pelas escolhas cinematográficas: imagens com baixo contraste e cores lavadas compõe as cenas no planeta desértico. Os espaços negativos convidam o espectador a projetar suas interpretações a um filme que não projeta sua própria voz sobre o conflito. É de se surpreender essa disparidade dentro da obra de Villeneuve, que justamente subverteu o esquema e filtro de cores amareladas clichê que Hollywood usa para representar metrópoles latino-americanas ao filmar Sicario (2015).

A trama do protagonista poderia facilmente descrita como um coming-of-age, mas com roupagens de cavalheiro espacial, a postos para liderar e salvar uma população nativa sobre a qual aprendeu em sua enciclopédia factual. Sua mãe, que é membra de uma seita religiosa poderosa que atravessa todo o sistema imperial e suas casas aristocráticas, aparece como figura mantenedora de ordens do passado bem como de horizontes de futuro. Temporalidades que buscam reger a ordem política futura a partir das decisões de um grupo seleto de pessoas.

Na evolução da trama, Villeneuve escolhe construir a narrativa maior a partir da exibição e foco no conflito de cada cena. Sequências longas e expositivas poderiam fazer o longa recair nos mesmos problemas das adaptações anteriores de Duna para as telas. Contudo, essa falta de visão geral acusa uma tentativa de certa microhistória para contar o todo. Impera aqui a ausência de vozes subjugadas nessa narrativa, além de certa incapacidade de microhistórias somarem-se a uma narrativa ampla de sistemas globais.

A história de Duna e seu eixo de dominação dos povos para a extração da “especiaria” levanta comparações com diversos sistemas globais de commodity que o mundo real construiu. A exploração da borracha nos séculox XIX e XX e do petróleo são exemplos que vem à mente. Porém, um sistema global da produção e detenção de conhecimento científico representado na questão das vacinas contra a COVID-19 também levanta comparações.

Ainda em fins de 2020, quando caminhava-se com a produção das vacinas e seus contratos de vendas entre farmacêuticas e Estados, a perspectiva era de que mais de metade das vacinas iria para países ricos que consistiam em menos de 15% da população mundial. O acesso do restante do mundo estaria, e esteve, comprometido. Enquanto isso, países na Europa enfrentam riscos de novas ondas por conta da resistência da população em vacinar-se. Já o Brasil, cuja dificuldade de acesso às vacinas deveu-se não só pelas hierarquias do sistema global mas sobretudo pelas políticas domésticas de um governo genocida, alcança, hoje, níveis de vacinação para causar inveja a qualquer líder estrangeiro. 

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