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Saúde, política e esporte sob um olhar para a seleção feminina de futebol do Afeganistão, de Laura Caroline Leme Bonani

2 setembro 2021

Saúde, política e esporte sob um olhar para a seleção feminina de futebol do Afeganistão, de Laura Caroline Leme Bonani

Mesmo alguns acreditando no contrário, política e esporte estão intrinsecamente relacionados. E, neste post, gostaria de dar um passo além: política, esporte e saúde andam lado a lado – ou pelo menos deveriam. Refletindo sobre a situação dramática que ocorre no Afeganistão, motivada por uma fotografia do Departamento de Defesa australiano, que realizou uma missão para retirar atletas de futebol feminino afegãs do país, pretendo explorar, mas sem esgotar, a relação entre essas três temáticas.. 

Para começar, é necessário darmos um passo atrás e entendermos um conceito essencial na saúde global: os determinantes sociais de saúde (DSS). Esse termo, que passou a ser utilizado com mais frequência pela Organização das Nações Unidas (ONU) no século XXI, segundo a epidemiologista Nancy Krieger, abrange aspectos sociais, econômicos, políticos, jurídicos e tecnológicos do passado e presente de uma sociedade, bem como as relações externas que esta possui com outros países. (Krieger, 2001)

Mas o que isso significa na prática? Significa que, para entendermos a saúde para além do escopo de doença, isto é, quando o indivíduo está com alguma enfermidade, é necessário que componentes sociais sejam analisados, como a qualidade da educação, do acesso à saúde, prevenção, saneamento básico, participação política, situação econômica, etc. 

Nesse sentido, entendo que o esporte tem papel fundamental como DSS. Ao longo de nossas vidas, conhecemos histórias de superação de atletas que saem de uma situação de vulnerabilidade social e alcançam o ápice do desempenho esportivo. Nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020, o Brasil conheceu a trajetória de Italo Ferreira, primeiro medalhista de ouro da modalidade. Vindo da pacata e humilde cidade de  Baía Formosa (RN), Italo contou com o apoio da família e amigos para iniciar sua carreira, surfando em um pedaço de isopor, para chegar à glória do esporte. 

No entanto, além das conquistas esportivas, vieram as econômicas e sociais: atualmente, o campeão olímpico e mundial tem uma gama de patrocinadores, uma casa confortável, apoia projetos sociais na sua cidade e é inspiração para diversas crianças. Longe de romantizar a pobreza, pois acredito que são tristes as histórias em que os atletas precisam escolher entre o almoço e o jantar para que consigam treinar, desejo demonstrar o poder de mudança social que o esporte tem. Italo poderia não ter se tornado um atleta de alto rendimento, mas sim um jovem saudável, que aprendeu inglês e ajudou crianças em sua comunidade. O esporte ensina disciplina, espírito de equipe, foco, concentração, planejamento e proporciona uma melhor qualidade de vida para aqueles que o praticam.

Dito isso, o que o surfe de Italo Ferreira tem a ver com o futebol feminino afegão mencionado no início deste texto? Para entender essa relação, voltemos à década de 1990, quando o Talibã assumiu o controle do Afeganistão pela primeira vez. Nesse período, mulheres e meninas foram retiradas da escola, perderam direitos e suas condições de indivíduos políticos na sociedade. No esporte, as atletas foram forçadas a parar de praticá-los, fossem amadoras ou profissionais. 

Com a saída do grupo extremista, passo a passo, as mulheres foram reconquistando seu espaço e o esporte teve papel fundamental nessa retomada. A seleção de futebol feminino,  criada somente em 2007, fruto da luta das mulheres afegãs que reivindicaram seus direitos e lugar na sociedade, é um dos grandes exemplos de empoderamento e liberdade que o esporte traz. 

O esporte, dessa maneira, foi essencial para a representação política e social das mulheres, bem como uma plataforma para que elas pudessem atuar e defender seus interesses. A saúde, por sua vez, se faz presente ao passo que a comunidade do futebol feminino afegão se engajava para o reconhecimento da modalidade, o desenvolvimento de jovens meninas e a possibilidade de um futuro melhor para aquelas gerações que cresceram sem perspectivas em meio a guerra.

No entanto, com a ocupação da capital Cabul pelo Talibã, todas as conquistas feministas foram ameaçadas. Temendo represálias e com as próprias vidas em jogo, as atletas, com destaque para a atual e a ex capitãs da seleção afegã, Shabnam Mobarez e Khalida Popal, ambas que residem fora do país, foram capazes de negociar junto a Fifa, governos estrangeiros e Federação Internacional dos Jogadores Profissionais de Futebol (Fifpro) uma retirada segura das jogadoras. Nesse movimento, a Austrália foi o país responsável por coordenar a retirada e oferecer vistos para que as atletas afegãs pudessem ter um novo lar.  

Com esse exemplo, é possível concluir, portanto, que o esporte é um meio muito eficiente para promover inclusão e igualdade de gênero nas sociedades. Em locais que mulheres conseguem criar uma comunidade esportiva, nota-se que uma cultura de apoio e respeito é ativada, fomentando um ambiente propício para a promoção de saúde física e mental, contribuindo para a redução dos estigmas e preconceitos contra o corpo da mulher, por exemplo (AUSTRÁLIA, 2021). Dessa forma, ao serem empoderadas política e socialmente, conseguem modificar determinantes sociais de saúde que historicamente lhes são desfavoráveis. 

Referências

KRIEGER, Nancy. A glossary for social epidemiology. J Epidemiol Community Health. v. 50, n. 10, p. 693–700, 2001.

ATLETAS da seleção afegã de futebol feminino deixam o Afeganistão com apoio do governo da Austrália. G1, 24 de ago. de 2021. Mundo. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/08/24/atletas-da-selecao-afega-de-futebol-feminino-deixam-o-afeganistao-com-apoio-do-governo-da-australia.ghtml. Acesso em: 29 de ago. de 2021. 

GOVERNO DA AUSTRÁLIA (Austrália). Victoria Government. Gender equality in health and wellbeing: All Victorians are affected by gendered health inequalities.. [S. l.], 2021. Disponível em: https://www.vic.gov.au/gender-equality-health-and-wellbeing. Acesso em: 2 set. 2021.
Foto mencionada no texto: https://twitter.com/DeptDefence/status/1430032160120090633

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Ammanda Costa
2 anos atrás

Achei muito interessante – e que faz todo sentido – pensar que políticas de investimentos no esporte podem transformar a vida de pessoas por todo o mundo, seja no Brasil ou no Afeganistão, de modo a melhorar determinantes de saúde. Muito importante pensar em saúde além do escopo de doença e assumir esse olhar mais diverso proposto no texto!

Laura Caroline Leme Bonani
2 anos atrás
Reply to  Ammanda Costa

E o empoderamento feminino através do esporte também é muito nítido. Obrigada pelo comentário!

Drielly de Souza Lima
2 anos atrás

A força existente no esporte é muito abrangente e tem impactos facilmente visualizáveis em todo tipo de sociedade, como apontado no texto ao comparar as situações do medalhista olímpico brasileiro e da seleção afegã de futebol feminino, mesmo assim, essa força parece ser muito subestimada, ou pouco valorizada do ponto de vista de iniciativas e investimentos. Parece ser exemplo disso o fato de que ao menor indicio de necessidade de “cortes no orçamento” os primeiros projetos a sofrerem cortes são os ligados ao esporte, muitas vezes por serem associados ao “lazer” quando na verdade também envolvem de forma significativa questões de educação e de saúde, como demonstra o texto.

Parabéns pelo texto, Laura!

Last edited 2 anos atrás by Drielly de Souza Lima
Laura Caroline Leme Bonani
2 anos atrás

Drielly, estou completamente de acordo. O esporte tem um potencial de transformação social imenso, mas infelizmente não é levado como uma política pública séria e capaz de transformar realidades. Obrigada pelo comentário!

Bianca Barreto
2 anos atrás

Post extremamente bem escrito!
Você conseguiu elucidar a temática da saúde além da doença. Acredito que o esporte é muito mais do que um fator transformador de vida. Durante este período pandêmico, ficou claro que a prática do mesmo é fundamental para a plena saúde de todos nós.
Ademais, mesmo que a situação do Afeganistão seja demasiadamente triste, é bom ver que outras Nações estão estendendo a mão, como foi o caso da Austrália.