Em sua campanha presidencial de 2018, Bolsonaro declarou que, se eleito, escolheria seus ministros por “critério técnico” e “sem viés ideológico”. Declarações similares, colocando o “técnico” e o “ideológico” em polos opostos, em que o primeiro é positivo e o segundo, negativo, tornaram-se lugar comum no discurso político pró-tecnicista. A falsa identificação do técnico como ausência de subjetividade advém, em parte, da alienação da Teoria Tradicional para com o social, alimentando a errônea impressão do cientista como dois “eu”s que não se sobrepõem: o pesquisador e o cidadão – e essa alienação apresenta consequências nefastas para a Saúde Global.
Para interpretar o que seria um saber técnico, faz-se necessário resgatar Horkheimer, pai das classificações conhecidas como Teoria Tradicional e Teoria Crítica. A Teoria Tradicional, que remonta ao Discurso do Método de Descartes, enquadra a ciência como um sistema dedutivo, no qual as proposições são ligadas de modo direto e não contraditório. O cientista, em sua concepção positivista, deixaria sua vivência enquanto ser político de lado ao exercer seu trabalho – a ciência enquanto puro sistema matemático de signos seria, assim, livre do subjetivismo.
O que Horkheimer aponta é exatamente o contrário: a teoria tradicional é a teoria subjetiva. Ao escolher a ênfase no método, considerando como exteriores “a gênese social dos problemas, as situações reais, nas quais a ciência é empregada e os fins perseguidos em sua aplicação” (HORKHEIMER, 1980, p. 155), uma opção está sendo feita. Dados são desprezados “em favor de uma estrutura anterior que os enquadraria” e selecionados pela metodologia, recebendo diferentes atribuições de peso. Essa ciência tradicional, por objetivar uma aplicação prática, acaba paradoxalmente se distanciando da realidade, ao desconsiderar que a existência social age como determinante da consciência e que, portanto, a separação entre um “eu” cientista e um “eu” político é impossível de ser alcançada. Ao falsamente eximir o observador de subjetivismo, cria-se a impressão de que não há influência ou escolha quanto ao desenrolar da teoria tradicional por parte do sujeito que a produz, contribuindo para a formação da narrativa de que há apenas uma visão possível – a “técnica” e “isenta”, invalidando assimqualquer outra. Por criar a ilusão de que essa separação seria possível e desejável, a Teoria Tradicional colabora para a formação de discursos falaciosos como o de Bolsonaro em 2018.
A ideia de uma ciência isenta, com o pesquisador como mero observador, afeta negativamente os resultados da atividade acadêmica em Saúde Global. Sendo a saúde holística, dependente tanto de determinantes sociais como biológicos, é necessário que o fazer científico na área considere a aplicação no plano real (a práxis) e a gênese social dos problemas. Em outras palavras, a colaboração para melhoria dos patamares globais de saúde deve ser o objetivo final do pesquisador, trabalhando como um cidadão consciente tanto dos processos históricos que formam a ele mesmo, quanto dos processos históricos que formam o objeto analisado. Enquanto trabalhos inseridos na perspectiva tradicional alienam o objeto da aplicabilidade e realidade social, trabalhos inseridos numa perspectiva de teoria crítica da Saúde Global contribuem para a adoção prática de estratégias que levam a patamares mais benéficos de saúde, agindo na raiz dos problemas socialmente gerados.
Não é preciso olhar muito longe para encontrar pesquisadores que colaboram para a evolução do acesso à saúde global ao instigar a reflexão via Teoria Crítica. Birn e Richter (2018), em sua exposição sobre filantropo-capitalismo, demonstram como as doações das fundações Rockefeller e Bill e Melinda Gates, aparentemente benéficas ao sistema de Saúde Global, moldam a agenda do campo, destinando recursos demarcados de forma não democrática para causas curto-prazistas e que não atacam a raiz dos problemas de saúde. João Biehl (2016), ao analisar a situação atual da teoria em saúde, aponta problemas que poderiam ser evitados caso se houvesse utilizado uma abordagem crítica – como a adoção da política de quarentena para conter o Ebola na África Ocidental em 2015, falhando “espetacularmente” por desconsiderar o contexto sociocultural no qual foi adotada. Em se tratando de Brasil, os membros do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (CEPEDISA) da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo apontaram o projeto deliberado de genocídio arquitetado pelo presidente da República antes mesmo da Comissão Parlamentar de Inquérito da pandemia, com o trabalho como um marco teórico importante para a comprovação dos crimes praticados na saúde e influência relevante nas investigações da CPI.
Assim, tornam-se claras as consequências nefastas de uma abordagem puramente tecnicista – com ênfase nos exemplos citados em Saúde Global – bem como os frutos advindos da visão crítica na pesquisa. Contrariando o que tem se estabelecido como senso comum, fica claro que a abordagem subjetiva é a técnica, e que a separação entre cientista e cidadão é impossível e, além disso, indesejável, se buscamos atingir uma sociedade mais justa. Como sabiamente coloca Horkheimer:
“Uma ciência que em sua autonomia imaginária se satisfaz em considerar a práxis – à qual serve e na qual está inserida – como o seu Além, e se contenta com a separação entre pensamento e ação, já renunciou à humanidade” (HORKHEIMER, 1980, página 154).
BIBLIOGRAFIA
ARANTES, P. Introdução. In: In: W. Benjamin; M. Horkheimer; T. Adorno, J. Habermas. Textos escolhidos (Col. Os Pensadores, Vol. XLVIII). São Paulo: Abril Cultural, 1980, pp. VI-XXIV.
HORKHEIMER, M. Teoria Tradicional e Teoria Crítica. In: W. Benjamin; M. Horkheimer; T. Adorno, J. Habermas. Textos escolhidos (Col. Os Pensadores, Vol. XLVIII). São Paulo: Abril Cultural, 1980, pp. 117-161.
BIEHL, 2016. Theorizing global health. Medicine Anthropology Theory, v. 3, n. 2: 127–142. Disponível em: https://spia.princeton.edu/system/files/research/documents/Biehl_TheorizingGlobalHealth_2016.pdf. Acesso em: 26 out. 2021.
BIRN e RICHTER, 2018. Filantropo-capitalismo estadunidense e a agenda da saúde global: as fundações Rockefeller e Gates, passado e presente. Ágora, [S.l.], v. 20, n. 2, p. 27-39. Disponível em: https://online.unisc.br/seer/index.php/agora/article/view/12366/7519. Acesso em: 26 out. 2021.
JORNAL NACIONAL. Bolsonaro diz que, se eleito, a escolha de ministros seguirá critérios técnicos. G1, [S. l.], 20 out. 2018. Eleições 2018, p. 1-1. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/noticia/2018/10/20/jair-bolsonaro-defende-reforma-politica-e-fim-da-reeleicao.ghtml. Acesso em: 26 out. 2021.
CENTRO DE ESTUDOS E PESQUISAS DE DIREITO SANITÁRIO (CEPEDISA). A Linha do Tempo da Estratégia Federal de Disseminação da Covid-19. 28 mai. 2021. Faculdade de Saúde Pública; Universidade de São Paulo. Disponível em: https://cepedisa.org.br/wp-content/uploads/2021/06/CEPEDISA-USP-Linha-do-Tempo-Maio-2021_v3.pdf. Acesso em: 26 out. 2021.
Excelente texto, Aimée! Lembro-me de muitas colocações extremamente tecnicistas e equivocadas que ouvi durante a pandemia de COVID-19. “É uma questão científica, não ideológica”, muitos dizem, como se o projeto de extermínio em curso no Brasil não tivesse sido uma escolha deliberadamente política, e implicando que a resolução do desastre sanitário que vivemos não passasse também por decisões políticas. Essa tentativa de separar uma ciência pura – que sequer existe – do subjetivo é alienante e muito perigosa. Todo desenvolvimento científico parte de um posicionamento, nenhuma ciência é isenta, e mesmo a opção pela ênfase no método, como bem colocado em seu texto, é essencialmente política.