Os problemas de uma abordagem tecnicista em saúde global, de Aimée Ibrahim

29 outubro 2021

Os problemas de uma abordagem tecnicista em saúde global, de Aimée Ibrahim

Em sua campanha presidencial de 2018, Bolsonaro declarou que, se eleito, escolheria seus ministros por “critério técnico” e “sem viés ideológico”. Declarações similares, colocando o “técnico” e o “ideológico” em polos opostos, em que o primeiro é positivo e o segundo, negativo, tornaram-se lugar comum no discurso político pró-tecnicista. A falsa identificação do técnico como ausência de subjetividade advém, em parte, da alienação da Teoria Tradicional para com o social, alimentando a errônea impressão do cientista como dois “eu”s que não se sobrepõem: o pesquisador e o cidadão – e essa alienação apresenta consequências nefastas para a Saúde Global.

Para interpretar o que seria um saber técnico, faz-se necessário resgatar Horkheimer, pai das classificações conhecidas como Teoria Tradicional e Teoria Crítica. A Teoria Tradicional, que remonta ao Discurso do Método de Descartes, enquadra a ciência como um sistema dedutivo, no qual as proposições são ligadas de modo direto e não contraditório. O cientista, em sua concepção positivista, deixaria sua vivência enquanto ser político de lado ao exercer seu trabalho – a ciência enquanto puro sistema matemático de signos seria, assim, livre do subjetivismo.

O que Horkheimer aponta é exatamente o contrário: a teoria tradicional é a teoria subjetiva. Ao escolher a ênfase no método, considerando como exteriores “a gênese social dos problemas, as situações reais, nas quais a ciência é empregada e os fins perseguidos em sua aplicação” (HORKHEIMER, 1980, p. 155), uma opção está sendo feita. Dados são desprezados “em favor de uma estrutura anterior que os enquadraria” e selecionados pela metodologia, recebendo diferentes atribuições de peso. Essa ciência tradicional, por objetivar uma aplicação prática, acaba paradoxalmente se distanciando da realidade, ao desconsiderar que a existência social age como determinante da consciência e que, portanto, a separação entre um “eu” cientista e um “eu” político é impossível de ser alcançada. Ao falsamente eximir o observador de subjetivismo, cria-se a impressão de que não há influência ou escolha quanto ao desenrolar da teoria tradicional por parte do sujeito que a produz, contribuindo para a formação da narrativa de que há apenas uma visão possível – a “técnica” e “isenta”, invalidando assimqualquer outra. Por criar a ilusão de que essa separação seria possível e desejável, a Teoria Tradicional colabora para a formação de discursos falaciosos como o de Bolsonaro em 2018.

A ideia de uma ciência isenta, com o pesquisador como mero observador, afeta negativamente os resultados da atividade acadêmica em Saúde Global. Sendo a saúde holística, dependente tanto de determinantes sociais como biológicos, é necessário que o fazer científico na área considere a aplicação no plano real (a práxis) e a gênese social dos problemas. Em outras palavras, a colaboração para melhoria dos patamares globais de saúde deve ser o objetivo final do pesquisador, trabalhando como um cidadão consciente tanto dos processos históricos que formam a ele mesmo, quanto dos processos históricos que formam o objeto analisado. Enquanto trabalhos inseridos na perspectiva tradicional alienam o objeto da aplicabilidade e realidade social, trabalhos inseridos numa perspectiva de teoria crítica da Saúde Global contribuem para a adoção prática de estratégias que levam a patamares mais benéficos de saúde, agindo na raiz dos problemas socialmente gerados.

Não é preciso olhar muito longe para encontrar pesquisadores que colaboram para a evolução do acesso à saúde global ao instigar a reflexão via Teoria Crítica. Birn e Richter (2018), em sua exposição sobre filantropo-capitalismo, demonstram como as doações das fundações Rockefeller e Bill e Melinda Gates, aparentemente benéficas ao sistema de Saúde Global, moldam a agenda do campo, destinando recursos demarcados de forma não democrática para causas curto-prazistas e que não atacam a raiz dos problemas de saúde. João Biehl (2016), ao analisar a situação atual da teoria em saúde, aponta problemas que poderiam ser evitados caso se houvesse utilizado uma abordagem crítica – como a adoção da política de quarentena para conter o Ebola na África Ocidental em 2015, falhando “espetacularmente” por desconsiderar o contexto sociocultural no qual foi adotada. Em se tratando de Brasil, os membros do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (CEPEDISA) da Faculdade de Saúde Pública  da Universidade de São Paulo apontaram o projeto deliberado de genocídio arquitetado pelo presidente da República antes mesmo da Comissão Parlamentar de Inquérito da pandemia, com o trabalho como um marco teórico importante para a comprovação dos crimes praticados na saúde e influência relevante nas investigações da CPI.

Assim, tornam-se claras as consequências nefastas de uma abordagem puramente tecnicista – com ênfase nos exemplos citados em Saúde Global – bem como os frutos advindos da visão crítica na pesquisa. Contrariando o que tem se estabelecido como senso comum, fica claro que a abordagem subjetiva é a técnica, e que a separação entre cientista e cidadão é impossível e, além disso, indesejável, se buscamos atingir uma sociedade mais justa. Como sabiamente coloca Horkheimer:

“Uma ciência que em sua autonomia imaginária se satisfaz em considerar a práxis – à qual serve e na qual está inserida – como o seu Além, e se contenta com a separação entre pensamento e ação, já renunciou à humanidade” (HORKHEIMER, 1980, página 154).

BIBLIOGRAFIA

ARANTES, P. Introdução. In: In: W. Benjamin; M. Horkheimer; T. Adorno, J. Habermas. Textos escolhidos (Col. Os Pensadores, Vol. XLVIII). São Paulo: Abril Cultural, 1980, pp. VI-XXIV.

HORKHEIMER, M. Teoria Tradicional e Teoria Crítica. In: W. Benjamin; M. Horkheimer; T. Adorno, J. Habermas. Textos escolhidos (Col. Os Pensadores, Vol. XLVIII). São Paulo: Abril Cultural, 1980, pp. 117-161.

BIEHL, 2016. Theorizing global health. Medicine Anthropology Theory, v. 3, n. 2: 127–142. Disponível em: https://spia.princeton.edu/system/files/research/documents/Biehl_TheorizingGlobalHealth_2016.pdf. Acesso em: 26 out. 2021.

BIRN e RICHTER, 2018. Filantropo-capitalismo estadunidense e a agenda da saúde global: as fundações Rockefeller e Gates, passado e presente. Ágora, [S.l.], v. 20, n. 2, p. 27-39. Disponível em: https://online.unisc.br/seer/index.php/agora/article/view/12366/7519. Acesso em: 26 out. 2021.

JORNAL NACIONAL. Bolsonaro diz que, se eleito, a escolha de ministros seguirá critérios técnicos. G1, [S. l.], 20 out. 2018. Eleições 2018, p. 1-1. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/noticia/2018/10/20/jair-bolsonaro-defende-reforma-politica-e-fim-da-reeleicao.ghtml. Acesso em: 26 out. 2021.

CENTRO DE ESTUDOS E PESQUISAS DE DIREITO SANITÁRIO (CEPEDISA). A Linha do Tempo da Estratégia Federal de Disseminação da Covid-19. 28 mai. 2021. Faculdade de Saúde Pública; Universidade de São Paulo. Disponível em: https://cepedisa.org.br/wp-content/uploads/2021/06/CEPEDISA-USP-Linha-do-Tempo-Maio-2021_v3.pdf. Acesso em: 26 out. 2021.

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Marina Sujkowski Lima
2 anos atrás

Excelente texto, Aimée! Lembro-me de muitas colocações extremamente tecnicistas e equivocadas que ouvi durante a pandemia de COVID-19. “É uma questão científica, não ideológica”, muitos dizem, como se o projeto de extermínio em curso no Brasil não tivesse sido uma escolha deliberadamente política, e implicando que a resolução do desastre sanitário que vivemos não passasse também por decisões políticas. Essa tentativa de separar uma ciência pura – que sequer existe – do subjetivo é alienante e muito perigosa. Todo desenvolvimento científico parte de um posicionamento, nenhuma ciência é isenta, e mesmo a opção pela ênfase no método, como bem colocado em seu texto, é essencialmente política.