O velho-novo Carandiru: O massacre, direitos humanos e a saúde pública no sistema carcerário brasileiro, de Beatriz Lalli de Freitas

19 outubro 2021

O velho-novo Carandiru: O massacre, direitos humanos e a saúde pública no sistema carcerário brasileiro, de Beatriz Lalli de Freitas

“111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos. Ou quase pretos, ou quase brancos, quase pretos de tão pobres. E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos” (Caetano Veloso e Gilberto Gil – composição Haiti, 1993 em referência ao Massacre do Carandiru)

No dia 2 de outubro de 2021, o cruel massacre do Carandiru completou 29 anos. Nesta mesma data no ano de 1992, mais de 300 policias militares entravam na casa de Detenção de São Paulo (Carandiru), e assassinavam 111 presos sob comando do coronel Ubiratan Guimarães, a fim de dissipar a rebelião que acontecia no Pavilhão 9 do presídio. Até hoje, nenhum agente de segurança jamais foi responsabilizado. É, portanto, inevitável refletir sobre a história recente do direito penal e da saúde pública no Brasil, nos permitindo inferir como o racismo estrutural permeia estes processos, denunciando o mito do que Gilberto Freyre chamou de democracia racial.

Infelizmente, a realidade do racismo e do sistema penitenciário brasileiro pouco mudou durante esses quase trinta anos de “democracia” brasileira.  Entende-se que a dignidade é também um direito contemplado pela saúde pública. Neste sentido, o atual cenário pandêmico, e o fato da letalidade do coronavírus nas prisões ser pelo menos cinco vezes maior do que para a população em geral, evidencia que a crise sanitária no sistema carcerário não é um evento recente, decorrente da pandemia, mas sim um problema estrutural – as condições insalubres e a violação de direitos humanos dentro das penitenciárias se prolongam por décadas, gerando a tendência de complicação do controle de uma emergência de saúde pública  (OLIVEIRA, 2021). Este breve ensaio, tem, portanto, o intuito de discutir as relações entre a justiça, a impunidade, o racismo, e o sistema penitenciário associados conjuntamente, de forma a conjurar uma questão de direitos humanos, inevitavelmente associada à saúde pública e à dignidade destes corpos.

A Constituição Federal de 1988 e o Código Penal preveem a garantia dos direitos humanos e dos direitos fundamentais de modo a proteger a dignidade da pessoa humana. Ambas convenções limitam o direito punitivo do Estado, garantindo um tratamento de punição que respeite a vida. Assim, desde sua criação o Código Penal prevê a manutenção dos direitos sociais das pessoas encarceradas, ainda que depois da década de 40, houveram mudanças  sociais que diminuem a eficiência dessas leis na prática. Por parte da Constituição, seu artigo 5º, inciso XLIX assegura ao condenado o direito à vida, integridade física e moral, proteção contra a tortura, tratamento cruel ou degradante, direitos estes também assegurados internacionalmente pelo Pacto de San José da Costa Rica.

No entanto, a realidade brasileira não condiz com o imaginário jurídico de sua lei. Sendo o país que ocupa o 3º lugar no ranking internacional de maior população carcerária, perdendo apenas para China e para os Estados Unidos, o Brasil conta com a superlotação dos presídios, que corresponde a 166%, contabilizando 812 mil presos, de acordo com dados do estudo “Sistema Prisional em Números” publicado em 2019. Um dado que se destaca ao compreender a posição do Brasil é que nos últimos 15 anos, a proporção de pessoas negras no sistema carcerário cresceu 14%, enquanto a de brancos diminuiu 19%. Hoje, de cada três presos, dois são negros. (Anuário de segurança pública, 2019). Neste sentido, os 657,8 mil presos dos que se tem informação sobre cor/raça disponível, 438,7 mil são negros, estimando 66,7%. Estes dados auxiliam a configurar a base e estrutura racial sobre a qual a justiça brasileira se sustenta em se tratando do sistema penal.

Além disso, o sistema carcerário no Brasil apresenta um cenário nocivo para a saúde física, mental e integridade moral dos detentos.  A superlotação das celas, sua precariedade e insalubridade tornam as prisões um ambiente propício à proliferação de epidemias e ao contágio de doenças. Fatores estruturais como também a má alimentação, sedentarismo, falta de higiene, uso de drogas facilitam a queda da imunidade, da resistência física, contribuindo para saúde frágil, podendo adquirir as mais variadas doenças quando em cárcere. As mais comuns são respiratórias como pneumonia e tuberculose, mas existem altos índices de hepatites e doenças venéreas como a AIDS, constando aproximadamente 20% dos presos como portadores do vírus HIV. Além disso, há um número considerável de presos portadores de distúrbios mentais, câncer, hanseníase ou algum tipo de paralisia ou outras deficiências físicas.

 Considerando este estado da saúde carcerária, não existe tratamento médico-hospitalar dentro das prisões, fazendo com que os presos dependam de escolta da PM para serem direcionados aos hospitais, o que pode demorar por conta da disponibilidade. Acaba ocorrendo a dupla penalização do condenado: à pena de prisão propriamente dita e o lamentável estado de saúde que ele adquire durante a sua permanência no cárcere. Também pode ser constatado o descumprimento dos dispositivos da Lei de Execução Penal, que prevê, no inc. VII do art. 40, o direito à saúde por parte do preso como uma obrigação do Estado.

Além disso, no caso de outras violações de direitos como no cumprimento da pena em regime domiciliar por porte de grave enfermidade, a manutenção do preso enfermo em estado prisional acaba se tornando desnecessária, tanto pelo descumprimento do dispositivo legal quanto pelo motivo da pena perder seu caráter retributivo, haja vista que ela não poderia retribuir ao condenado a pena de morte dentro da prisão. Dessa forma, a manutenção do preso em estado deplorável de saúde estaria fazendo com que a pena não só perdesse o seu caráter ressocializador, mas também estaria sendo descumprido um princípio geral do Direito, consagrado no art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil. (ASSIS, 2007). 

O documentário “Sem Pena” (2014) através de um olhar crítico sobre os fatos, apoia em sua trama, elementos sobre as relações que envolvem justiça, punição, crime, cena do crime, evidencia, culpa, submissão e, em um último momento, a evasão da dignidade humana. Essa linha de reflexão sob visões posicionadas em diferentes estados sociais e poderes políticos, por diferentes vozes da sociedade como réus, criminosos, juízes, promotores, assistentes sociais e antropólogos, cria um cenário dialético que conduz de forma profunda e muitas vezes obscura a interesses que regem a instituição criminosa do país, em todos os seus desafios e perspectivas. Os atributos dos direitos humanos e sua representação na mídia são cada vez mais enfatizados quando se trata do comprometimento da Justiça com o crime cometido, existindo, portanto, um sentimento de injustiça, de impunidade, que gera mal-estar coletivo, dirigido justamente aos agentes que tutelam os direitos das pessoas em situação de crime. Outra indicação disso seria a impunidade dos promotores responsáveis pelo massacre do Carandiru. Este colégio geral, voltado para a Justiça, tem forte implicação na construção do discurso da população: quando se comete um crime, deve-se encontrar o criminoso, e aqui o direito popular e histórico rege “olho por olho, dente por dente ” (COSTA, 2016).

Por fim, é possível perceber que ainda que o massacre do Carandiru tenha ocorrido há 29 anos, dada sua impunidade, ele ainda acontece todos os dias, seja por meio de massacres sangrentos dentro e fora doa presídios, seja por outras violências traduzidas na restrição carcerária dos direitos à dignidade e à saúde. Para além de ultrapassar o entendimento desumano de que a perda de liberdade para o preso acarreta necessariamente a supressão de seus direitos fundamentais (NUCCI, 2014), como consta no artigo 38 do Código Penal — “preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral“–, é necessário repensar as formas de correção social e entender o cárcere como uma via ineficiente e potencialmente problemática de reinserção civil e social. 

O sistema penitenciário no Brasil, inevitavelmente, passa a envolver a questão da saúde publica  e dos direitos humanos porque seu processo está intrincado na distinção e discriminação de corpos negros e pobres. Se é considerada Saúde Pública todo o conjunto de medidas executadas pelo Estado para garantir o bem-estar físico, mental e social da população (FIOCRUZ), o sistema carcerário com certeza não cumpre esse dever. Este breve ensaio visou refletir sobre o sistema penitenciário a partir do entendimento jurídico da violação dos direitos humanos e da saúde pública como instrumentos que corroboram a sentença dos presos, contribuindo para a consolidação de um sistema penal comumente injusto, improcedente e parcial, que evidencia a inexistência da democracia racial. Neste sentido, o presídio é apenas uma parte do problema que se esboça no Brasil quando entendemos a relação entre justiça, saúde pública e racismo.

Notas:

1. Segundo análises do Departamento Penitenciário Nacional, 50,96% das pessoas que estão no sistema prisional cometeram delitos enquadrados no grande grupo de “crimes contra o patrimônio” relacionados a furto, roubo, receptação de mercadoria roubada e dano à propriedade alheia. Ainda, 20,28% respondem por crimes relacionados a drogas e 17,36% estão enquadrados nos “crimes contra a pessoa” – homicídio, infanticídio, aborto e outros
2. No cenário brasileiro 41,5% são presos provisórios (não cumprem pena definitiva). Ainda, um estudo do Instituto de Defesa de Direito de Defesa indicam que as prisões provisórias  no Brasil são, em grande parte, destinadas a jovens, negros e pobres, que possuem baixa escolaridade e empregos precários.

Referências

Anuário brasileiro de segurança pública (2021). Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/07/anuario-2021-completo-v4-bx.pdf

ASSIS, Rafael Damaceno A REALIDADE ATUAL DO SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO; Revista CEJ, Brasília, Ano XI, n. 39, p. 74-78, out./dez. 2007

Código Penal brasileiro, 1940 . Disponível em:  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm

Constituição Federal Brasileira de 1998. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala. São Paulo: Global Editora, 2003.

SEM PENA. Direção de Eugenio Puppo. Brasil: Heco Produções, Espaço Filmes e Prefeitura de São Paulo, 2014. Documentário, 86min, son, col.

Sistema prisional em números. Disponível em> https://www.cnmp.mp.br/portal/relatoriosbi/sistema-prisional-em-numeros

OLIVEIRA IRL, Franhani RM, Gobbi DR, Guimarães GS. COVID-19 no sistema penitenciário brasileiro: um desafio à saúde pública. Glob Acad Nurs. 2021;2(Spe.2):e116. https://dx.doi.org/10.5935/2675- 5602.20200116

O que é saúde Pública – FIOCRUZ – Disponível em: http://www.fiocruz.br/bibsp/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=107 

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