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O papel do Bolsa Família na saúde pública e o risco chamado Auxílio Brasil, de Matheus Carvalho Siqueira

18 novembro 2021

O papel do Bolsa Família na saúde pública e o risco chamado Auxílio Brasil, de Matheus Carvalho Siqueira

O Programa Bolsa Família (PBF), criado em Outubro de 2003, foi o maior programa de transferência de renda do mundo. A política pública foi criada com três eixos principais: complemento da renda; acesso a direitos; e articulação com outras ações a fim de estimular o desenvolvimento das famílias[1]. Ele buscou atender famílias em situação de pobreza e extrema pobreza, sendo que o limite de renda[2] foi o recorte social feito. A relevância do programa resultou no recebimento de diversos prêmios e reconhecimentos, como o I Prêmio Award for Outstanding Achievement in Social Security feito pela Associação Internacional de Seguridade Social (Issa) em 2013[3].

O objetivo do Bolsa Família era garantir, às famílias assistidas, o direito à alimentação e o acesso à saúde e à educação. Para isso, existiam algumas condicionantes para que as pessoas continuassem recebendo o benefício, como manter a presença das crianças na escola acima de 85%, a caderneta de vacinação das mesmas e acompanhamento de pesos, medidas e desenvolvimento a cada 6 meses conforme calendário de acompanhamento; além disso, as gestantes devem fazer o pré-natal e ir às consultas na Unidade de Saúde. Dessa forma, o IPEA, em documento[4], apontou que “O PBF mostra um potencial significativo para a redução de desigualdades em saúde” (p. 47).

Assim, vemos como as externalidades do programa trazem, em um panorama social, junto com o aumento de renda individual de cada família, um aumento da saúde pública como um todo. Por último, o acompanhamento nutricional, também previsto como condicionalidade, atesta o desenvolvimento dessas crianças contempladas. Um estudo realizado na Universidade Regional do Cariri (URCA), aponta que o “acompanhamento das condicionalidades de saúde dos beneficiários do Bolsa Família é uma importante estratégia de promoção da saúde da mulher e da criança.”[5] (p. 13857). A primeira condicionalidade, e mais clara, é de garantir a imunização das crianças incluídas no programa das doenças vacinados e previstas no Sistema Único de Saúde[6]. A segunda condicionalidade, do acompanhamento pré-natal das gestantes, visa melhorar a saúde da futura mãe e do futuro neném, aumentando, também, a qualidade de saúde de modo geral. Em terceiro, está a necessidade da alta presença escolar das crianças, que para além de evitar o trabalho infantil e garantir o direito à escola[7], assegura também ao menos uma alimentação saudável no dia, que é a merenda escolar.

Como mostra a reportagem no jornal Folha de São Paulo “Um estudo feito por pesquisadores do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs) da Fiocruz Bahia, em conjunto com a Universidade Federal da Bahia (UFBA) e a Escola de Medicina Tropical e Higiene de Londres, demonstrou pela primeira vez como o Programa Bolsa Família (PBF) reduziu a mortalidade infantil e melhorou a condição de saúde de crianças no país em dez anos, de 2006 a 2015.”[8]. Além da mortalidade infantil, outro estudo, feito por Andreza Daniela Pontes Lucas, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), aponta que “os resultados mostraram que as crianças nascidas em domicílios em que as mães recebiam o Bolsa Família tinham menos chance de nascer com baixo peso, muito baixo peso, nascer após 37 semanas de gestação ou 28 semanas de gravidez.”[9] Tais estudos revelam, por meio de dados, a funcionalidade do Bolsa Família e sua relação com conquistas nacionais ligadas à saúde e bem estar-social.

Nesse contexto, o governo de Jair Bolsonaro, por meio da Medida Provisória 1.061, de 9 de agosto de 2021[10], regulamentado, posteriormente, pelo Decreto 10.852, de 8 de novembro de 2021[11], criou o Auxílio Brasil, em substituição ao Bolsa Família. A modificação vai além da nomenclatura, uma vez que, o novo programa não trata dos pré-requisitos ligados à saúde pública ou educação antes previstos. Assim, embora mencione o acompanhamento, não exige em seu texto que a atualização da carteira de vacinação das crianças pertencentes às famílias beneficiadas, assim como, nenhuma outra condicionante ligada à saúde das mães e bebês, além de não prever o controle da evasão escolar a partir da obrigatoriedade da presença em aulas. Dessa forma, nas competências de cada órgão, o Auxílio Brasil inaugurou gestões separadas entre os Ministérios da Cidadania, da Saúde e da Educação, referentes aos temas de renda, vacinação e evasão escolar[12]. Se anteriormente havia comunicação sob a coordenação do Ministério da Cidadania, previsto pelo Bolsa Família, dispondo das três vertentes, de forma compulsória, o novo programa passou a garantir unicamente a renda familiar. Em relação às estratégias de saúde pública, o programa vai em desencontro ao que o Bolsa Família propunha nos últimos anos, já que não garante o direito à saúde, não trata do acompanhamento dos pactos de vacinas sociais ao grupo populacional beneficiado e ameaça o compromisso coletivo no sentido de haver menor procura por vacinas em crianças.

Desse modo, com a exposição dos inúmeros benefícios que o texto do Bolsa Família garantia à sociedade, evidencia-se seu papel nas melhorias dos dados brasileiros. Os benefícios são especialmente referentes à redução da mortalidade infantil, às melhorias na saúde das crianças e mães e, consequentemente, melhor desempenho social na erradicação de doenças e qualidade de vida. Assim, colocá-los em risco com o estabelecimento de um novo programa que não substitui inteiramente o plano em funcionamento, encerra as melhorias notadas e evidenciadas por estudos. O Bolsa Família, inicialmente, tratando-se de um plano de Governo, tornou-se, ao longo dos anos, um plano de Estado, continuado por diversas gestões, que demonstrava resultados em questões de renda e saúde pública. A substituição para o Auxílio Brasil, que trata-se de um plano de Governo com data de término, evidencia o potencial para riscos considerados já superados pela sociedade.

BIBLIOGRAFIA

BRASIL. Decreto nº 10.852, de 8 de novembro de 2021. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 8 de novembro de 2021. Seção 1 – Extra A, p. 2.

BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 16 de julho de 1990.

BRASIL. Medida provisória nº 1.061, de 9 de agosto de 2021. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 10 de agosto de 2021. Seção 1, p. 6.

GOVERNO DO ESTADO DO PARANÁ (Brasil). Secretária de Saúde. Programa Bolsa Família na Saúde. 2021. Disponível em: https://www.saude.pr.gov.br/Pagina/Programa-Bolsa-Familia-na-Saude. Acesso em: 15 nov. 2021.

MINISTÉRIO DA CIDADANIA (Brasil). Ações e Programas. Bolsa Família. 2021. Disponível em: https://www.gov.br/cidadania/pt-br/acoes-e-programas/bolsa-familia. Acesso em: 15 nov. 2021.

MINISTÉRIO DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA E INOVAÇÕES (Brasil). Pesquisa da UFPE analisa o impacto do Programa Bolsa Família na saúde de mães e crianças: Pesquisa apoiada pelo CNPq e coordenada pela ex-bolsista, Profª da UFPE, Andreza Lucas, concluiu que o programa contribuiu para reduzir problemas de saúde das crianças nascidas de mães cujas famílias ganharam o benefício. Pesquisa do Dia, 30 mar. 2021. Disponível em: https://www.gov.br/cnpq/pt-br/assuntos/noticias/pesquisa-do-dia/pesquisa-coordenada-por-professora-da-ufpe-analisa-o-impacto-do-programa-bolsa-familia-na-saude-de-maes-e-criancas. Acesso em: 15 nov. 2021.

MINISTÉRIO DA SAÚDE (Brasil). Secretaria de Atenção Primária à Saúde (SAPS). Programa Bolsa Família. In: Programa Bolsa Família. 2021. Disponível em: https://aps.saude.gov.br/ape/bfa. Acesso em: 15 nov. 2021.

RAMOS, Dandara; SILVA, NB; et al. Conditional cash transfer program and child mortality:: A cross-sectional analysis nested within the 100 Million Brazilian Cohort. Plos Medicine, 28 set. 2021. DOI https://doi.org/10.1371/journal.pmed.1003509. Disponível em: https://journals.plos.org/plosmedicine/article?id=10.1371/journal.pmed.1003509. Acesso em: 15 nov. 2021.

SAMPAIO, Raquel Linhares et al. Acompanhamento de saúde de famílias beneficiárias do programa bolsa família: relato de experiência. Brazilian Journal of Health Review, Curitiba, v. 3, n. 5, p. 13848-13861, set./out 2020. DOI: 10.34119/bjhrv3n5-198. Disponível em: https://www.brazilianjournals.com/index.php/BJHR/article/view/17665. Acesso em: 15 nov. 2021.

SECRETARIA DE ASSUNTOS ESTRATÉGICOS DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA (Brasil). IPEA. Programa Bolsa Família: uma década de inclusão e cidadania. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2014. Disponível em: https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/bolsa_familia/Livros/Bolsa10anos_Sumex_Port.pdf. Acesso em: 15 nov. 2021.


[1] https://www.gov.br/cidadania/pt-br/acoes-e-programas/bolsa-familia

[2] Podiam fazer parte do programa: todas as famílias com renda por pessoa de até R $89,00 mensais; e famílias com renda por pessoa entre R $89,01 e R $178,00 mensais, desde que tenham crianças ou adolescentes de 0 a 17 anos.

[3] https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2013/10/15/interna-brasil,393447/bolsa-familia-assegura-premio-internacional-de-seguridade-social-ao-brasil.shtml

[4] Documento completo aqui: https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/bolsa_familia/Livros/Bolsa10anos_Sumex_Port.pdf

[5] Estudo completo aqui: https://www.brazilianjournals.com/index.php/BJHR/article/view/17665

[6] https://www.gov.br/saude/pt-br/media/pdf/2021/junho/09/calendario-de-vacinacao-2020_crianca.pdf

[7] Previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm

[8] Ver reportagem completa aqui: https://folha.com/hj1efl3t; e o estudo completo aqui: https://journals.plos.org/plosmedicine/article?id=10.1371/journal.pmed.1003509

[9] Estudo completo aqui: https://www.gov.br/cnpq/pt-br/assuntos/noticias/pesquisa-do-dia/pesquisa-coordenada-por-professora-da-ufpe-analisa-o-impacto-do-programa-bolsa-familia-na-saude-de-maes-e-criancas

[10] Portaria aqui: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/medida-provisoria-n-1.061-de-9-de-agosto-de-2021-337251007

[11] Portaria aqui: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.852-de-8-de-novembro-de-2021-357706502

[12] Ver reportagem aqui: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2021/11/15/auxilio-brasil-vacinacao-infantil-frequencia-escolar-bolsa-familia.htm

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