A espécie humana evoluiu e conquistou o planeta, mesmo sem ser a melhor adaptada às condições físicas e climáticas. Entretanto, como qualquer outro ser desse ambiente, estamos fadados à um processo de morte, que ainda é inescapável e imprevisível. As diferentes sociedades humanas lidam com a morte de modos diversos. Dentro da sociedade ocidental, o processo de envelhecimento atua como um marcador desse ciclo de vida, e, a velhice, é o último estágio, sendo constantemente abordada por meio de estigmatização e enfoque em seus aspectos mais negativos.
Biologicamente, a velhice é caracterizada por uma diminuição de várias capacidades físicas e de algumas funções cognitivas, entretanto, as relações que possuímos com esse estágio vão além dos processos naturais. Como Simone de Beauvoir aborda em seu livro “A velhice”(1), na nossa sociedade, pessoas idosas são tratadas como pertencentes a uma categoria diferente, isto é, há uma certa desumanização da velhice, que é perceptível por meio do pagamento de “uma miserável esmola para nos sentirmos desobrigados com relação a eles.”
A importância de se discutir o envelhecimento parte não somente de que é o “futuro”, mas também, de que vivemos em um mundo com uma população cada vez mais envelhecida. Conforme dados da ONU, em 2019, a população idosa chegou a 703 milhões de pessoas, e as projeções para 2050, é de alcançar 1,5 bilhão, onde 1 em cada 6 pessoas terá mais de 65 anos(2). No Brasil, se apresentam proporções semelhantes(3), de acordo com o IBGE, até 2030, o país irá possuir a quinta maior população mais envelhecida(4), e, até 2060, 25% vai possuir mais de 60 anos(5). Esse fenômeno de envelhecimento global é inédito, e, ocorre, principalmente, pelos avanços tecnológicos e medicinais, como também, pelas diminuições das taxas de natalidade nos países.
E, apesar dos muitos avanços que houveram com relação ao tema, como o aumento de regulamentações para abordar o cuidado a pessoa idosa, desde o Artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a I e II Assembleia Mundial sobre o Envelhecimento (Viena, 1982; Madri, 2002), a I e II Conferência Regional da América Latina e Caribe sobre Envelhecimento(6), ainda não há uma estrutura capacitada para a promoção eficaz da saúde e bem-estar na velhice. E dado o seu fator improdutivo, as políticas públicas direcionadas a essa população são escassas e passam por processos de desmonte.
Ademais, dentro desse cenário, temos a pandemia de Covid-19. Desde o começo, pessoas idosas e/ou com doenças crônicas foram consideradas um grupo vulnerável ao desenvolvimento da forma mais grave da doença. Essa dinâmica estigmatizou a doença como sendo “de velho”, gerando, no início, certa indiferença de parcelas da sociedade com relação à gravidade da Covid-19. Para além disso, as medidas de contenção do vírus, como o isolamento e distanciamento social, que são muito necessárias, acabaram por gerar efeitos prejudiciais para as populações idosas. Segundo matéria da BBC, está ocorrendo a intensificação do processo natural de demência no mundo, onde a falta de interações sociais vem piorando as funções cognitivas dos indivíduos(7).
Além disso, muitas vezes essas pessoas estão sozinhas ou abandonadas, com problemas financeiros, condições de saúde frágeis ou sem um estrutura familiar dando suporte, o que as tornam mais vulneráveis ao desenvolvimento de depressão e ansiedade, especialmente, em um momento que as discussões estão sendo sobre “quem corre maior risco respiratório”, “quantas pessoas estão morrendo”, “quem representa a maioria dos internamentos”, etc. Tais discussões causam um nível de sofrimento mental muito alto, ainda mais, quando se é esse grupo alvo dessas estatísticas.
No entanto, a pandemia não causou essas situações, mas intensificou uma estrutura que já era inadequada. Não há muitos projetos que abordam como ter um processo de envelhecimento mais saudável, nem como garantir o sustento dessas pessoas. Normalmente, são sugeridas diferentes atividades para melhorar a qualidade de vida, como a prática de esportes, regulação emocional, aprofundamento de conexões familiares, participação em atividades ao ar livre e a utilização da tecnologia como um meio de conexão social. Mas, dentro do contexto da pandemia, as primeiras atividades não são possíveis de serem realizadas de modo seguro, e, conforme Hammerschmitd (2020) apresenta: “historicamente, a população idosa brasileira apresenta baixa escolaridade e dificuldade de acesso aos recursos tecnológicos. Infelizmente, este fato […] limita as possibilidades de comunicação, principalmente durante o distanciamento […]”(8). Dessa forma, as questões gerontológicas necessitam de políticas públicas especificas e estruturais, com enfoque na segurança social.
Portanto, com o aumento da expectativa de vida e das muitas conquistas tecnológicas e medicinais, podemos superar a ideia de que a velhice é um estágio continuo de morte, dor e sofrimento, e, para além do físico, devemos aprender a cultivar relações sociais mais saudáveis com nós mesmo. Ao se considerar que somos nós que criamos uma série de preconceitos com uma idade avançada (e com tudo o que acreditamos que isso representa), talvez, o primeiro passo para uma solução seja uma mudança de perspectiva em relação ao que significa envelhecer.
Notas de Rodapé:
1. BEAUVOIR, Simone de, 1908-1986 3. Ed. A velhice [recurso eletrônico] / Simone de Beauvoir; tradução Maria Helena Franco Martins. – 3. Ed. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018. Recurso digital (Biblioteca aúrea). Formato Ebook. ISBN 9788520943618.
2. UNITED NATIONS, Department of Economic and Social Affairs, Population Division (2019). World Population Ageing 2019: Highlights (ST/ESA/SER.A/430). Disponível em: <https://www.un-ilibrary.org/content/books/9789210045537>. Acesso em 15 out. 2021
3. AGÊNCIA DE NOTÍCIAS IBGE (ed.). Expectativa de vida dos brasileiros aumenta 3 meses e chega a 76,6 anos em 2019. 2020. Editoria por Estatísticas Sociais. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/29505-expectativa-de-vida-dos-brasileiros-aumenta-3-meses-e-chega-a-76-6-anos-em-2019>. Acesso em: 10 out. 2021.
4. JORNAL DA USP. Universidade de São Paulo (USP). Em 2030, Brasil terá a quinta população mais idosa do mundo. 2019. São Paulo. Disponível em: <https://jornal.usp.br/?p=165490>. Acesso em: 10 out. 2021.
5. AGÊNCIA DE NOTÍCIAS IBGE. Projeção da População 2018: número de habitantes do país deve parar de crescer em 2047. 2018. Editoria por Estatísticas Sociais. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/21837-projecao-da-populacao-2018-numero-de-habitantes-do-pais-deve-parar-de-crescer-em-2047. Acesso em: 15 out. 2021.
6. CORTE, Beltrina. Envelhecimento e Subjetividade: desafios para uma cultura de compromisso social / Conselho Federal de Psicologia. Brasília, DF, 2008. 196 p. Disponível em: <https://site.cfp.org.br/publicacao/publicao-envelhecimento-e-subjetividade-desafios-para-uma-cultura-de-compromisso-social/>. Acesso em: 10 out. 2021.
7. VASCONCELOS, M. BBC News Brasil. Como covid-19 deve acelerar epidemia de demência no mundo. 2021. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/geral-58312525>. Acesso em: 10 out. 2021.
8. HAMMERSCHMIDT, KS de A; SANTANA, RF. Saúde do idoso em tempos de pandemia Covid-19. Cogitare enferm. [Internet]. 2020. 25. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.5380/ce.v25i0.72849>. Acesso em 15 out. 2021