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O apartheid sanitário como indício de uma democracia precária no Brasil, de Beatriz Lalli de Freitas

26 setembro 2021

O apartheid sanitário como indício de uma democracia precária no Brasil, de Beatriz Lalli de Freitas

O saneamento básico é um dos direitos fundamentais garantidos pela constituição de 1988, pois está na interface de temas como a gestão hídrica, saúde pública, mercado financeiro, interesse e bem estar público no Brasil. Sendo um elo importante entre a vida política e social, existe uma relação direta entre saneamento e os índices de saúde, educação, desemprego e internação por doenças infecciosas relacionados a sua ausência, que em 2018 constaram 3 milhões de casos (Ministério da Saúde, 2020). Neste breve ensaio, procuro enfatizar que os direitos à água encanada, coleta de lixo e tratamento de esgoto vão ainda mais além na relevância socioeconômica nacional: configuram também determinantes essenciais para a compreensão da democracia no Brasil.

Resultante da ampliação da agenda neoliberal iniciada em 2016 com o impeachment da presidente Dilma, atualmente a aprovação de medidas de mercantilização da natureza comprovam o processo de desmonte do setor público (MASO, CALISTO, GALEB, 2020). A questão que se pretende invocar é que a universalização do saneamento é também uma questão de direitos humanos, que não pode ser contemplada pela ótica financeira, correndo o risco de ser incoerente no seu endereçamento. Desse ponto de vista, o acesso ao saneamento básico é, portanto, uma questão de ordem internacional, cobrada pela OCDE e pelas metas de Desenvolvimento sustentável da ONU, como um compromisso a ser alcançado por todos os estados membros, que incluem o Brasil (OCDE, 2015).

Atualmente, 85,8% dos brasileiros têm acesso a água encanada (IBGE, 2018). Ainda que não esteja longe da universalização do saneamento, o Brasil apresenta grandes disparidades regionais e números consideráveis de residências ainda não contempladas com este direito. Em 2018, o IBGE registrou pelo menos 57 milhões de residências sem acesso a rede de esgoto, 24 milhões sem água encanada e 15 milhões sem coleta de lixo. O principal problema que surge disso, é a conduta estatal que insiste em aprofundar a desigualdade existente neste setor crucial para o desenvolvimento nacional, contribuindo para o que alguns hoje chamam de apartheid sanitário. 

A lei 14.026/20 aprovada em julho de 2020, conhecida como o novo marco legal do saneamento propõe reformas na competência da Agência Nacional de Águas (ANA) e estabelece novas datas para o prazo da universalização de atendimento de 99% da população com água potável e 90% com coleta de lixo e tratamento de esgoto até 2033, — adicionando a possibilidade da extensão deste prazo em sete anos, até 2040–. Ao estabelecer condições ao acesso de recursos federais, readequação e migração aos novos padrões contratuais, a agência passa a assumir o papel da regulação de normas de referência para a universalização do saneamento. A partir disso, algumas prefeituras entendem que a proposta de lei viola diretamente os termos da constituição federal, que delega aos municípios a regulação, organização e prestação de serviços de interesse local para abordar o saneamento (ASSEMAE, 2020). Portanto, a preocupação que surge do novo marco legal é a de como a definição de recursos públicos e privados podem diminuir a eficiência da gestão das águas brasileiras (RIBEIRO, 2020). 

Os impactos desta aprovação podem ser, em grande medida, negativos para a população, quando consideramos o processo político que a antecede e envolve. Se analisarmos esta lei como uma consequência do comando de grupos econômicos transnacionais que expandem seus interesses para redefinir o mercado em meio a uma crise econômica, entendemos que esta estratégia está fundamentada no controle e privatização da água como um mercado de bacias hidrográficas. Neste sentido, considerando o Brasil como um país de grande riqueza hídrica, sendo casa de bacias como Amazonas e São Francisco e ainda detentor de grandes aquíferos como Guarani e Alter do Chão, a lei 14.026/20 transforma a água em um mercado ligado ao interesse estratégico de produção global, se desfazendo enquanto um patrimônio nacional e um direito básico. Fica evidente que o avanço da privatização da água, associado a políticas que negligenciam o patrimônio ambiental brasileiro, constitui-se não apenas como um elemento de organização do capital financeiro, mas também na desumanização deste direito nato. A lógica privada de gestão da natureza não permite que a totalidade da hidrografia seja entendida e endereçada, atendendo a questões ambientais como escassez e enchentes oriundas da má gestão das águas (MASO, CALISTO, GALEB, 2020).

Neste sentido, podemos usar o caso do novo marco legal do saneamento básico para entender o quão relevante é a participação popular nos processos decisórios (RIBEIRO, 2020). A aprovação da Lei expõe o quão insuficiente tem sido o engajamento e o interesse cidadãos em questões políticas, quando na verdade, esta tarefa é nada mais do que um dever cívico, por exigir e cobrar do estado, condições de vida dignas e bem-estar social. Ainda mais enfaticamente quando um projeto prevê o aumento de tarifas, mesmo sem  a confirmação de que todos receberão os benefícios desta iniciativa (MASO, CALISTO, GALEB, 2020). Da mesma forma, é dever e responsabilidade do Estado garanti-las. Os cidadãos devem exigir a garantia de espaços legítimos e efetivos de participação, através da saúde, educação e empregabilidade, pela implantação de políticas públicas transparentes, descentralizadas e abertas ao diálogo, que, em última instância, cooperam para o funcionamento democrático. Assim, a participação cidadã deve ir além da expressão de partidos e identidades políticas, e se adentrar na elaboração e implementação de políticas públicas a fim de que se possa permitir uma gestão que abarque de forma justa o potencial geográfico, econômico e humano brasileiros (RIBEIRO, 2020).

Por fim, entende-se que o saneamento básico pode atuar como unificador nacional de forma a tornar confortável o cotidiano brasileiro através da participação política, como também pode ser grande ponto de inflexão democrática, como mostra o exemplo do novo marco sanitário. A participação pública dos setores sociais auxilia na demanda para efetivação de ajustes e fiscalização da lei, além de evidenciar a natureza impetuosa e impulsiva desta aprovação, que tende a gerar desconforto jurídico e administrativo. Ao mesmo tempo, estas características da implementação do novo marco atribuem a ele incapacidade de promover o que promete: a universalização do acesso ao saneamento, e de cortesia, impopularidade. Portanto, é imprescindível entender a questão sanitária no Brasil aos olhos de processos políticos e as suas respostas a incentivos econômicos e jurídicos  internacionais.

Referências:

Anna Carolina Galeb, Dalila Calisto e Tchenna Maso (2020) – A sobrecarga de tarifas na vida do povo brasileiro. disponível em: ://diplomatique.org.br/a-sobrecarga-de-tarifas-na-vida-do-povo-brasileiro/

RIBEIRO, Luciana (2020): Mote para a vitimização ou para a autonomia? disponível em: https://diplomatique.org.br/mote-para-a-vitimizacao-ou-para-a-autonomia/

Associação nacional dos serviços municipais de saneamento – ASSEMAE (2020) http://www.assemae.org.br/noticias/item/6013-marco-legal-do-saneamento-e-inconstitucional-e-coage-municipios

Lei 14.026/20- disponível em  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l14026.htm

Princípios da OCDE para governança da água (2015). Disponível em:   

 https://www.oecd.org/cfe/regionaldevelopment/OECD-Principles-Water-portuguese.pdf
Pesquisa Nacional de Saneamento Básico de 2017 (2020): https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101734.pdf

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Gabriel Alegria dos S. Reis
2 anos atrás

Beatriz, vejo seu artigo como absolutamente essencial. Antes de tudo, creio ser vital uma perspectiva para a saúde que a busque compreender de maneira integral, levando em considerações fenômenos sociais, econômicos, ambientais e étnicos. Como você deixa muito claro, o processo de mercantilização da água no Brasil é também uma mercantilização da própria saúde dos brasileiros, relegando às dinâmicas do lucro e do mercado o desenvolvimento de infraestrutura essencial para o bem-estar e saúde de seções significativas da população. A garantia de saneamento básico, como bem sabemos, é elemento absolutamente central para a criação de um país saudável, e as sérias lacunas na garantia desse direito, no coração da endemia de doenças evitáveis entre as camadas mais pobres da população brasileira, além de fator que multiplica o penar de outros problemas de saúde. Com uma responsabilidade que traça com clareza à ratificação do Brasil ao Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em 1992, são 30 anos de negligência circunscrita geográfica e racialmente.