Começo resgatando uma frase de Frantz Fanon (2008) em Pele negra, máscaras brancas: “Na américa, os pretos são mantidos à parte”, penso que tal reflexão é extremamente cabível para a atualidade, mais precisamente para a pandemia de COVID-19. Embora saibamos que o problema de racismo não compreende fronteiras e continentes, há de se reconhecer as marcas do período colonial, escravocrata e leis segregacionistas, além dos governos que na ocasião detém o poder e assemelham os problemas da população negra do Brasil e dos EUA (Bailey et al, 2017).
Em processo contínuo de vulnerabilização, a população negra destes países observou a emergência da pandemia de COVID-19, como mais um desastre entre suas comunidades (Mude et al, 2021) , nesse sentido, para os movimentos sociais negros, as informações acerca da raça/cor são fundamentais para tensionar criação de políticas de saúde equânimes através do descortinamento das iniquidades raciais, compreendidas como desigualdades originadas principalmente na esfera política que também atingem outras esferas de vida da população, como na saúde (Almeida-Filho, 2020; Santos et al, 2020; Werneck, 2016). Desse modo, é importante refletir sobre os processos de exclusão abissal que incidem sobre esta população, reconhecendo o processo de racismo estrutural ocorrente no sistema que implica em barreiras de acesso e cuidados em saúde, visto que a diferenciação entre as raças é um processo político e capitalista (Santos BS, 2018; Werneck, 2016; Almeida, 2018; Bailey et al, 2017; Quijano, 2009).
Nos EUA e no Brasil, a informação durante a pandemia de COVID-19 inicialmente era inexistente, por não ser divulgada e obrigatória, embora houvessem informações censitárias acerca dos dados raciais da população autodeclarada entre brancos, negros, asiáticos e indígenas, desde a década de 1970, diferindo apenas em relação a inserção dos latinos como categoria, a divulgação das informações não ocorreu em primeiro momento (Petruccelli, 2013, 2002). Até agosto de 2020 as informações de notificação acerca da raça/cor dos casos e óbitos decorrentes da COVID-19 não eram obrigatórias no Brasil e nos EUA, o CDC inicialmente publicou apenas dados desagregados por sexo e idade, com exceção dos estados de Kansas e Illinois, que divulgaram dados étnico-raciais (Santos MP et al, 2020).
O processo de negligência da população negra que permeia esferas de invisibilidade e incompetência, transborda tensão em 2020 com o assassinato de George Floyd nos EUA, fruto do racismo institucional e através do movimento Black Lives Matter (Lankes, 2021) insere a pauta racial na agenda política através de protestos significativos ao redor do mundo, tensionando ações de governos e policy makers em meio à intensificação do discurso liberal, ultraconservador, xenofóbico e racista, ao passo que enfrentava o maior problema de saúde global da atualidade.
Mesmo com sistemas de saúde diferentes nos dois países, esta população é posta continuamente em situação de vulnerabilidade e exclusão. Nos EUA, a população negra e sobretudo idosa sofreu com falta de testagem dos casos e hospitalização, que contou com grandes percentuais de óbitos onde a maioria possuía Medcare ou Medcaid, seguros públicos de saúde financiados pelo governo nacional e estadual. Já no Brasil, as altas taxas de falta de declaração da raça/cor dos pacientes invisibilizou análises detalhadas sobre casos e internação, além disso, bairros com maiores percentuais de pessoas negras também foram locais com maior ocorrência de casos e óbitos (Price-Haywood, 2020; CDC, 2021; Oliveira et al, 2020; Pólis, 2021).
É importante também ressaltar que embora a vacinação não seja a “bala mágica” para o problema da pandemia e necessite ser conjuntamente empregada com outros métodos de prevenção, os programas atingiram a população negra de forma diferenciada em relação à outros grupos raciais, com menores índices de doses aplicadas, incompletude de informações raciais e desconfiança sobre a segurança dos imunizantes (Biehl, 2016; Nunes, 2021). Além disso, a priorização de populações mais idosas nos cronogramas, seguindo o modelo de países europeus, sem considerar a situação das diferentes comunidades, conferiu desigualdade à população negra que não alcança faixas etárias mais elevadas em razão dos processos de vulnerabilização em seu ciclo de vida (Pólis, 2021b).
Dessa forma, pautar a temática sobre a saúde da população negra envolve a compreensão de diferentes fenômenos políticos e sociais atuantes, principalmente quando analisamos à luz dos determinantes sociais em saúde (Buss e Pelegrini Filho, 2007). A saúde das pessoas negras além da hospitalização e vacinação foi diretamente afetada pela falta de qualidade em suas moradias, ausência de seguridade social que assegurasse alimentação de qualidade e que fosse possível realizar isolamento da forma estabelecida pelas autoridades, mesmo estando situados geograficamente opostos no mesmo continente os problemas são semelhantes, resgato as indagações de Fanon (2018) e me pergunto até quando?
Referências
Fanon, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
Bailey ZD, Krieger N, Agénor M, Graves J, Linos N, Bassett MT. Structural racism and health inequities in the USA: evidence and interventions. Lancet. 2017;389(10077):1453-1463.
Mude W, Oguoma VM, Nyanhanda T, Mwanri L, Njue C. Racial disparities in COVID-19 pandemic cases, hospitalisations, and deaths: A systematic review and meta-analysis. Journal of Global Health. 2021; 11:05015.
Almeida-filho, N. Desigualdades en salud: nuevas perspectivas teóricas. Salud Coletiva. 2020; 16(06).
Santos, M.P.A; Nery, J.S; Góes, E.M; Silva, A; Santos, A.B.S; Batista, L.E; Araújo, E.M. População negra e Covid-19: reflexões sobre racismo e saúde. Estud. Av. 2020; 34(99).
SANTOS, B.S. Introdução as epistemologias do sul. In: SANTOS, B.S. Construindo as Epistemologias do Sul: Antologia Esencial. v.1. Buenos Aires: Conselho Latino-americano de Ciências Sociais, 2018.
WERNECK, J. Racismo institucional e saúde da população negra. Saúde e Soc. 2016; 25(3):535-549.
ALMEIDA, S.L. Concepção Estrutural. In: ALMEIDA, S.L. O que é Racismo Estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.
Bailey, Z.D; Krieger N; Agénor, M; Graves, J; Linos, N; Bassett, M.T. Structural racism and health inequities in the USA: evidence and interventions. The Lancet. 2017; 2017389(1007): 1453-1463.
Quijano, A. Colonialidade do Poder e Classificação Social. In: SANTOS, B.S; MENEZES, M.P. Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina, 2009.
Petruccelli, J.L. Autoidentificação, identidade étinico-racial e heteroclassificação. In: Petruccelli, J.L; Saboia, A.L (org). Características étnico-raciais da população: classificações e identidades. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2013.
__________. Raça, etnicidade e origem nos censos de EUA, França, Canadá e Grã-Bretanha. Estud. afro-asiát. 2002; 24(3).
Lankes, C. How George Floyd’s death reignited a worldwide movement. Deutsche Welle. Disponível em:< https://www.dw.com/en/how-george-floyds-death-reignited-a-worldwide-movement/a-56781938>. Acesso 22 set 2021.
Price-Haywood EG, Burton J, Fort D, Seoane L. Hospitalization and Mortality among Black Patients and White Patients with Covid-19. N Engl J Med. 2020; 25;382(26):2534-2543.
Centers for Disease Control and Prevention. Hospitalization Rates and Characteristics of Patients Hospitalized with Laboratory-Confirmed Coronavirus Disease 2019 — COVID-NET, 14 States, March 1–30, 2020. Disponível em:< https://www.cdc.gov/mmwr/volumes/69/wr/mm6915e3.htm>. Acesso 21 set. 2021.
Oliveira, R.G; Cunha, A.P; Gadelha, A.G.S; Carpio, C.G; Oliveira, R.B; Corrêa, R.M. Desigualdades raciais e a morte como horizonte: considerações sobre a COVID-19 e o racismo estrutural. Cad. Saúde Pública. 2020; 36(9)
Instituto Pólis. trabalho, território e covid-19 no msp. Disponível em:< https://polis.org.br/estudos/trabalho-territorio-e-covid-no-msp/>. Acesso 22 set 2021.
Biehl, J. Theorizing global health. Medicine Antropology Theory. 2016; 3(2): 127-142.
Nunes, C. Afro-americanos deixam de tomar vacina contra Covid-19 por desconfiança do governo. Alma Preta. Disponível em:< https://almapreta.com/sessao/africa-diaspora/afro-americanos-deixam-de-tomar-vacina-contra-covid-19-por-desconfianca-do-governo>. Acesso 22 set 2021.
Instituto Polis. Abordagem territorial e desigualdades raciais na vacinação contra covid-19. Disponível em:< https://polis.org.br/estudos/territorio-raca-e-vacinacao/>. Acesso 22 set 2021.
Buss, P.M; Pelegrini Filho, A. A saúde e seus determinantes sociais. Physis. 2007; 17(1):77-93.
Ótimo texto Letícia! É realmente muito importante questionar os projetos do governo que escolhem seguir lógicas que não se enquadram à nossa população. Acho que principalmente na parte me que você cita a vacinação, é legal lembrar, por exemplo, da demora, da priorização de funções essenciais, que não pararam ou foram fortemente penalizadas pela pandemia com demissões agressivas, como os motoristas de ônibus, metroviários e ferroviários. Demorou mais do que o esperado para que os governos estaduais e o federal reconhecessem os diferentes níveis de vulnerabilidade durante a pandemia aqui no Brasil e ainda existe muito espaço em que crescer nesse assunto. Seguimos no Ctrl C e Ctrl V de políticas europeias que não enfrentam o mesmo nível de diversidade e desigualdade que nós.
Muito bom post, Letícia. A não-incorporação da questão racial no combate à pandemia (já muito desestruturado, incompleto e não-planejado por si só a nível federal), bem como a não-consideração da transversalidade dessa temática em diversas outras políticas públicas, prejudica ainda mais a condução nacional em busca de acabar com a crise de saúde pública. Não colocar a questão racial no centro das discussões da ação política, econômica e sanitária – como as questões de gênero, também não colocadas no centro ao meu ver – não só torna ineficazes as políticas generalizadas que assumem uma igualdade ou “neutralidade” racial inexistente, como também contribuem para o aprofundamento das desigualdades que tanto marcam nosso país.