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Hanseníase: estigma e negligência, de Sonia de Castilho

17 novembro 2021

Hanseníase: estigma e negligência, de Sonia de Castilho

A hanseníase é classificada pela Organização Mundial da Saúde como uma DTN – Doença Tropical Negligenciada, por se associar intensamente à pobreza e a populações socialmente excluídas. Enfermidade milenar, aos poucos foi desaparecendo dos aglomerados sociais mais desenvolvidos, com a melhora da economia e das condições de vida e higiene da população. Mas ainda prolifera em regiões e ambientes empobrecidos e vulneráveis.

Doença infecciosa e transmissível, com baixa letalidade, a hanseníase tem por agente etiológico o Mycobacterium leprae, bacilo que afeta principalmente nervos periféricos, olhos e pele. Atinge igualmente homens e mulheres, de qualquer faixa etária, apresenta evolução lenta e progressiva e, quando não tratada, pode causar deformidades e incapacidades físicas, muitas vezes irreversíveis.

A partir do início dos anos 1980, o desenvolvimento de medicamentos eficazes – a poliquimioterapia, conhecida como PQT – tornou a hanseníase passível de cura. Segundo estimativas da OMS, nesse período mais de 18 milhões de pacientes foram diagnosticados e tratados. Mais: a PQT viabilizou o convívio social dos pacientes acometidos pela enfermidade, já que o uso da medicação interrompe de imediato o risco de contágio.

Foi o tratamento eficaz que tornou possível a eliminação da hanseníase como um problema de saúde pública (definida como prevalência registrada de menos de 1 caso por 10.000 habitantes), alcançada globalmente em 2000 e em quase todos os países (números nacionais) em 2015. Mas isso não significa que a doença esteja eliminada. Estima-se que 3-4 milhões de pessoas no mundo vivem com incapacidades físicas visíveis devido à hanseníase. E dados de 2019 mostram um total de 202.256 novos casos detectados em 118 países. Destes, 79% concentram-se na Índia, no Brasil e na Indonésia.

O Brasil é o segundo país em número absoluto de casos de hanseníase (atrás apenas da Índia), mas o primeiro em número de casos por habitantes. Concentra 92,6% das ocorrências da doença no continente americano. Também ocupa a segunda posição na detecção de casos novos. Em 2018, foram 28.660 (cerca de 8,5% com deformidades visíveis – Grau de Incapacidade Física 2). Chama a atenção entre os indicadores o fato de que 43% dos casos são diagnosticados entre pessoas que têm o ensino fundamental incompleto.

Não é possível pensar a hanseníase sem levar em conta os determinantes sociais da doença – e no Brasil não é diferente. A enfermidade acomete com mais frequência populações desprivilegiadas, em áreas remotas e contextos de extrema vulnerabilidade socioeconômica, com condições de habitação e alimentação precárias. A isso, soma-se a dificuldade de acesso à rede de serviços de saúde, bem como às informações acerca dos sinais e sintomas, com reflexos na detecção e tratamento da doença em sua fase inicial.

Há ainda um forte estigma envolvendo a doença, ecos dos textos bíblicos que mostram o “leproso” como impuro, sujo, pecaminoso. No Brasil, o preconceito foi reforçado pelo isolamento compulsório dos pacientes em colônias (“leprosários”), política sanitária que durou até os anos 1960/1970. Assim, a crença na população é de que a pessoa com hanseníase deve ser isolada, tem o destino irremediavelmente selado e desperta medo, repulsa ou, na melhor das hipóteses, piedade – mas quase nunca acolhimento.

Aqueles em tratamento e mesmo os que já estão curados sofrem discriminação — na escola, no trabalho, até na família. Perder o emprego, não conseguir alugar uma casa, ter dificuldades para ser atendido por um dentista ou barbeiro são obstáculos frequentes de quem tem/teve hanseníase. O estigma, conforme admite a própria OMS, tem impacto negativo no acesso ao diagnóstico, no autocuidado e nos resultados do tratamento. E o atraso no diagnóstico aumenta o risco de transmissão da infecção nas famílias e nas comunidades.

Com o objetivo geral de reduzir a carga de enfermidade no Brasil, foi lançada em abril de 2020 a Estratégia Nacional para Enfrentamento da Hanseníase 2019-2022. A proposta é dar ferramentas para gestores e profissionais de saúde na elaboração de programas em todos os níveis de atenção (estadual, regional e municipal). Por sua vez, em abril último a OMS lançou Estratégia Global de Hanseníase 2021–2030 — Rumo à zero hanseníase, estruturada em quatro pilares: implementar roteiro zero hanseníase próprio do país, em todos os países endêmicos; ampliar a prevenção da doença juntamente com a detecção ativa integrada de casos; tratar a hanseníase e suas complicações e prevenir incapacidades; e combater o estigma e garantir respeito aos direitos humanos.

Resta torcer para que esse esforço institucional consiga reduzir a carga de hanseníase, no Brasil e no mundo. Infelizmente, porém, a situação ainda pode ser considerada dramática e importante. Como atinge majoritariamente pessoas extremamente vulneráveis, socialmente excluídas, que não são visíveis e não pertencem ao círculo formador de opinião, a enfermidade é esquecida e negligenciada. Falta informação, falta divulgação maciça sobre o problema, falta educação do paciente e das comunidades de risco. E faltam políticas que contemplem a melhoria das condições sociais e sanitárias da população desfavorecida.

REFERÊNCIAS

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Faria L e Santos LAC. A hanseníase e sua história no Brasil: a história de um “flagelo nacional”.Hist Cienc Saude-Manguinhos. 2015; 22 (4): 1491-1495.

Leite SCC, Caldeira AP. Oficinas terapêuticas para a reabilitação psíquica de pacientes institucionalizados em decorrência da hanseníase.  Ciênc. saúde coletiva. Rio de Janeiro: 2015; 201520 (6).

Ministério da Saúde (BR). Estratégia Nacional para Enfrentamento da Hanseníase 2019-2022/Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis. Brasília: Ministério da Saúde, 2019

Ministério da Saúde (BR). Boletim Epidemiológico – Hanseníase. Secretaria de Vigilância em Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, jan. 2020

Estratégia Global de Hanseníase 2021–2030 “Rumo à zero hanseníase”. Nova Delhi: Organização Mundial da Saúde, Escritório Regional para o Sudeste Asiático; 2021.

Pescarini JM, Strina A, Nery JS, Skalinski LM, Andrade KVF, Penna MLF, Brickley EB, Rodrigues LC, Barreto ML, Penna GO. Socioeconomic risk markers of leprosy in high-burden countries: A systematic review and meta-analysis. PLoS Negl Trop Dis. 2018 Jul 9;12(7):e0006622.

Rocha ACRP et al. O discurso coletivo de ex-hanseniano morador de um antigo leprosário no nordeste do Brasil. Interface – Comunic, Saúde, Educ. 2011; 15(36), 213-23.

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