A morte é um fato onipresente. Está presente nas histórias em mesas de família, no planejamento financeiro individual, no escapismo do entretenimento, extremamente presente nos noticiários em razão da pandemia, e não escapa à saúde global. De certo que a definição do campo da saúde global em si é divisivo em suas diversas nuances sobre decolonialidade, mas de uma forma ou outra, o debate gira em torno da mais efetiva e humana forma de se promover saúde aos povos. Ora, ao considerar a definição de saúde adotada pela Organização Mundial de Saúde (como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade”[1]), não seria a asseguração do direito a uma morte digna também parte de uma promoção humanitária de saúde?
Primeiro é necessário que se reconheça a importância do direito à dignidade humana como princípio preambular da Declaração Universal dos Direitos Humanos e sua relação dialética com o direito à vida (descrito no artigo 3º da Declaração)[2], ambos bens jurídicos indubitavelmente abrangidos na definição de saúde previamente exposta. Borchat e Freitas (2020, p.9) colocam que, embora a existência biológica humana seja o que de fato permita a gozação dos seus direitos, o direito à vida pressupõe não apenas a mera existência de condição de se estar vivo, mas também de possibilidade de uma participação mínima e consciente do convívio social, havendo necessidade de que, para seu pleno proveito, o direito à vida seja sustentado em conjunto com a dignidade e integridades física e psicológica (o que obviamente é feito mantendo em mente a premissa de que um indivíduo não pode ser privado de seus direitos humanos por terceiros).
Em segundo lugar, é importante que se considere que o indivíduo, como beneficiado do direito à própria vida, é o único que pode exercê-lo. A escolha ativa pela morte do indivíduo, considerando conscientemente que a alternativa é a prolongação de tratamentos indesejados ou o julgado prolongamento do próprio sofrimento (que é apenas verdadeiramente sentido pelo próprio indivíduo acometido pela eventualidade), é senão o exercício do próprio direito à vida, e não a renúncia deste, dada a morte como parte natural do processo vital (SÁ & MOUREIRA. 2015, pg.65). É uma decisão pautada fundamentalmente na decisão da pessoa, ainda em estado de consciência (diretamente, via diretiva antecipada de vontade ou via representante legal), de, diante da própria deterioração biológica que em seu julgar reduziria sua dignidade de pessoa humana, preservar seus direitos humanos, usando do próprio direito à autodeterminação como meio de resolução do conflito entre vida e dignidade.
É um entrave ao debate da questão, porém, que a morte seja um forte tabu pelos mais diversos motivos sociológicos. Faz com que seja uma pauta de difícil penetração no debate público amplo, mas de impossível capacidade de ser ignorado ultimamente diante do sofrimento de vítimas do COVID-19 e a escassa disponibilidade de insumos e leitos para atender a demanda. No Brasil a tragédia dos 605 mil mortos acumulados ressuscitou o debate sobre tratamento paliativo a pacientes terminais irreversíveis e ortotanásia. O tema também tem avançado no restante da América Latina, especialmente no Chile[3] e Argentina[4], ambos países que possuem projetos de lei em tramitação em diferentes etapas do processo legislativo para permitir o respeito do Estado à decisão de pacientes com condições que gerem sofrimento físico e psicológico intolerável pela eutanásia como preservação do direito a uma morte digna. Na Colômbia, onde o direito é assegurado legalmente, o debate foi reavivado também por decisão judicial, sendo recorrida, de negação a procedimento de eutanásia a uma portadora de esclerose lateral amiotrófica, gerando nova onda de debates[5].
Destarte, se hoje a saúde global norte-centrada prioriza respostas técnicas independente das condições de vida locais[6], permitir que a condição de preservação da dignidade seja definida pelo próprio indivíduo consciente que sofre, e assim respeitar sua decisão como forma de garantia de sua dignidade, se faz como um passo que respeite a autonomia e a saúde de para quem se promove saúde em primeiro lugar.
Bibliografia
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COLOMBO, Sylvia. Conservador, Chile vê guinada progressista com governo de centro direita. Folha de São Paulo, 22 jun. 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/06/conservador-chile-ve-guinada-progressista-com-governo-de-centro-direita.shtml. Acesso em: 24 out. 2021
COLOMBO, Sylvia; COLLUCCI, Cláudia. Eutanásia volta ao debate na América Latina após caso de colombiana. Folha de São Paulo, 23 out. 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021/10/eutanasia-volta-ao-debate-na-america-latina-apos-caso-de-colombiana.shtml?utm_source=twitter&utm_medium=social&utm_campaign=comptw. Acesso em: 24 out. 2021.
AITH, Fernando. Morte Digna: Direito Natural do Ser Humano. Revista de Direito Sanitário, São Paulo, v. 8, n. 1, p. 173-187, Mar./Jun. 2007. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rdisan/article/view/80048. Acesso em: 24 out. 2021.
BORCHART, Carolina Bombonatto; FREITAS, Paulo Henrique de Souza. Autolimitação do direito fundamental à vida: Morte digna. Argumenta Journal Law, Paraná, n. 33, p. 129-161, Jul./Dez. 2020. Disponível em: http://seer.uenp.edu.br/index.php/argumenta/article/view/1964. Acesso em: 24 out. 2021.
BRANCO, Fernanda Leontsis Carvalho. A Morte de Ivan Ilitch e as diretivas antecipadas da vontade: Direito e literatura numa reflexão sobre morte digna. Revista de Direito, Arte e Literatura, v. 6, n. 1, p. 21-38, Jan./Jun. 2020. Disponível em: https://indexlaw.org/index.php/revistadireitoarteliteratura/article/view/6386. Acesso em: 24 out. 2021.
[1] OMS, Organização Mundial da Saúde. Constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS/WHO). 1946.
[2] ONU, Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU. 1948.
[3] COLOMBO, Sylvia. Conservador, Chile vê guinada progressista com governo de centro direita. Folha de São Paulo. 22 jun. 2019.
[4] CARNEIRO, Mariana. Justiça argentina permite “morte digna” de paciente. Folha de São Paulo. 07 jul. 2015.
[5] COLOMBO, S.; COLLUCI, C. Eutanásia volta ao debate na América Latina após caso de colombiana. Folha de São Paulo. 23 out. 2021.
[6] BIEHL, João. Theorizing global health. Medicine Anthropology Theory, n. 2, p. 134, 2016.