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Distribuição desigual dos riscos em saúde e sustentabilidade: análise a partir da alimentação, de Luiza Piazza

17 novembro 2021

Distribuição desigual dos riscos em saúde e sustentabilidade: análise a partir da alimentação, de Luiza Piazza

Sob uma perspectiva crítica e multidimensional de sustentabilidade, o campo da Saúde Global tem uma relação intrínseca com questões relacionadas à “solidariedade e responsabilidade compartilhada pelos recursos do planeta, direitos humanos e uma revisão dos modelos de produção e consumo”[1]. A distribuição de riscos e responsabilidades, porém, é extremamente desigual nessas áreas, conforme ilustram alguns exemplos: as disparidades no acesso à vacina contra a COVID-19 configuram um “apartheid de vacinas” fortemente marcado pela renda dos países[2]; e os mais pobres são os países que mais sofrem com as consequências catastróficas das mudanças climáticas, ainda que sejam os que menos emitem os gases do efeito estufa[3]. Nesse contexto, este artigo busca analisar essas desigualdades mundiais, explorando a forma como a expansão dos sistemas alimentares em moldes capitalistas tem afetado a saúde das populações em países mais pobres. Como exemplo, serão analisados os mercados de dois produtos que fazem parte da cadeia de produção de alimentos e que têm relação direta com o estado de saúde dos indivíduos e do meio-ambiente: os agrotóxicos e os alimentos ultraprocessados.

Nos últimos 30 anos, o uso de agrotóxicos aumentou muito em países de baixa e média renda, sobretudo na Ásia e América Latina, no contexto do crescimento populacional, da liberalização comercial e da expansão das fronteiras agrícolas proporcionada pela “Revolução Verde”[4, 5]. Se em 1990, esses países consumiam cerca de 0,45 milhão de toneladas ao ano, hoje consomem 1,5 milhão de toneladas, o que representa mais da metade do consumo mundial[6]. Os impactos desses produtos, porém, não são os mesmos em todos os países. Devido a diferenças de preço [7] ou questões políticas[8], muitos dos pesticidas usados em países mais pobres são aqueles que, hoje, já estão banidos em países mais ricos, pelos perigos que representam à saúde[5]. Além disso, embora existam diretrizes e acordos internacionais que regulam essa área, é registrado que países em desenvolvimento enfrentam mais dificuldades para proteger suas populações. Isso porque equipamentos de proteção frequentemente não estão disponíveis ou são muito caros para a realidade dos produtores agrícolas, os centros de controle de intoxicações são raros e a fiscalização é limitada[4, 5].

Paralelamente à expansão do consumo de agrotóxicos, os países do Sul Global vivenciaram um aumento da oferta de alimentos ultraprocessados. Com a saturação dos mercados consumidores em países ricos, as multinacionais do setor de alimentos e bebidas viram nos países de renda média e baixa uma oportunidade de crescimento dos lucros[9], de modo que uma sólida estrutura de produção, venda e distribuição de alimentos calóricos e pobres em nutrientes se estabeleceu nesses locais. Nesses países, a expansão dessas empresas é especialmente preocupante, pois, devido ao seu poder econômico e influência política, elas geralmente são capazes de ofertar seus produtos a valores mais baixos do que os de alimentos naturais, tornando-se uma opção mais viável para populações pobres[10, 11]. Isso é possível graças a estratégias como aquisições de empresas locais, a criação de redes de distribuição extensas – que garantem acesso a locais remotos, como comunidades rurais -, e a campanhas agressivas de marketing, muitas vezes aproveitando brechas na legislação local e mirando grupos vulneráveis, como crianças[10, 11, 12]. Nesse cenário, os sistemas de saúde e as políticas públicas desses países enfrentam um desafio duplo: lidar com doenças crônicas não transmissíveis enquanto ainda lidam com a fome e a subnutrição[9, 13].

Além dos danos que podem causar à saúde das populações[14], há um outro aspecto em comum entre essas indústrias: a atuação política. Por influência da atividade comercial de grandes empresas do setor de alimentos, países de baixa renda encontram dificuldades em formular e implementar políticas de proteção à saúde[15]. Essa atuação inclui lobby na arena política, interferências na produção de pesquisa científica e “cortinas de fumaça”, como parcerias público-privadas de responsabilidade corporativa[11]. Algo semelhante ocorre nas arenas de regulação ambiental e agroquímica: indústrias produtoras de pesticidas também atuam para capturar atores políticos e barrar medidas voltadas à diminuição do uso de agrotóxicos[16]. Todo esse cenário é reforçado pelo fato de que, conforme documentado pela literatura, países mais pobres, por diversas razões, costumam ter mais fragilidades políticas e institucionais que os tornam mais suscetíveis a esse tipo de pressão[11, 16].

Conforme Nunes (2020), nosso atual sistema econômico faz com que a garantia de boas condições de saúde seja distribuída de maneira extremamente desigual. O breve panorama do consumo de agrotóxicos e alimentos ultraprocessados exposto acima corrobora com essa ideia, pois fica visível que dinâmicas de poder político e econômico impactam diretamente na distribuição desigual das vulnerabilidades em saúde. Em países menos desenvolvidos, a possibilidade de acessar uma alimentação e um meio-ambiente sustentáveis é mais restrita, acentuando dificuldades históricas já existentes nos sistemas de saúde. Assim, na intersecção entre saúde, sustentabilidade e modelo econômico, é fundamental que as disparidades entre as condições de vida das populações de diferentes países também estejam no centro das discussões globais sobre o futuro que buscamos construir.

Referências

[1] VENTURA, Deisy de Freitas Lima; GIULIO, Gabriela Marques di; RACHED, Danielle Hanna. Lessons from the Covid-19 pandemic: sustainability is an indispensable condition of Global Health Security. Ambiente & Sociedade, v. 23, 2020. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/asoc/a/TFS5x6zGyZw4MSvQc5J3XZj/?lang=en>. Acesso em: 15 nov. 2021.

[2] REUTERS. World has entered stage of “vaccine apartheid” – WHO head. 17 mai. 2021. Disponível em: <https://www.reuters.com/business/healthcare-pharmaceuticals/world-has-entered-stage-vaccine-apartheid-who-head-2021-05-17/>. Acesso em 15 nov. 2021.

[3] EL PAÍS Brasil. Índice de Desenvolvimento Humano 2020 revela como o planeta sustenta os países mais ricos. 15 dez. 2020. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/sociedad/2020-12-15/indice-de-desenvolvimento-humano-2020-revela-como-o-planeta-sustenta-os-paises-mais-ricos.html>. Acesso em: 15 nov. 2021.

[4] ENSIA. The developing world is awash in pesticides. Does it have to be? 22 jun. 2016. Disponível em: <https://ensia.com/features/developing-world-pesticides/>. Acesso em: 15 nov. 2021.

[5] PESTICIDE Action Network. Communities in Peril: Global report on health impacts of pesticide use in agriculture. Filipinas, 2010. Disponível em: <https://www.pan-germany.org/download/PAN-I_CBM-Global-Report_1006-final.pdf>. Acesso em: 15 nov. 2021.

[6] PUBLIC Eye. Lucros altamente perigosos. Como a Syngenta ganha bilhões vendendo agrotóxicos altamente perigosos. Lausanne, 2019. Disponível em: <https://www.publiceye.ch/fileadmin/doc/Pestizide/2019_PublicEye_Lucros_altamente_perigosos_Report.pdf>. Acesso em: 15 nov. 2021.

[7] TRADE for development News. Pesticide residues: The safe trade challenge. 05 out. 2021. Disponível em: <https://trade4devnews.enhancedif.org/en/op-ed/pesticide-residues-safe-trade-challenge>. Acesso em 15 nov. 2021.

[8] BRASIL de Fato. Agrotóxicos: 44% dos princípios ativos liberados no Brasil são proibidos na Europa. 06 ago. 2019. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2019/08/06/agrotoxicos-44-dos-principios-ativos-liberados-no-brasil-sao-proibidos-na-europa>. Acesso em: 15 nov. 2021.

[9] THE Guardian. Alarm as corporate giants target developing countries. 23 nov. 2011. Disponível em: <https://www.theguardian.com/global-development/2011/nov/23/corporate-giants-target-developing-countries>. Acesso em: 15 nov. 2021.

[10] TRAILL, William Bruce. Transnational corporations, food systems and their impacts on diets in developing countries. UN FAO Trade Policy Technical Notes, nov. 2017. Disponível em: <https://www.fao.org/3/i8192e/i8192e.pdf>. Acesso em 15 nov. 2021.

[11] THE Conversation. How big companies are targeting middle income countries to boost ultra-processed food sales. 13 set. 2021. Disponível em: <https://theconversation.com/how-big-companies-are-targeting-middle-income-countries-to-boost-ultra-processed-food-sales-166927>. Acesso em 15 nov. 2021.

[12] THE New York Times. How Big Business Got Brazil Hooked on Junk Food. 16 set. 2017. Disponível em: <https://www.nytimes.com/interactive/2017/09/16/health/brazil-obesity-nestle.html>. Acesso em: 15 nov. 2021.

[13] FAO no Brasil. Novo relatório das Nações Unidas revela a desigualdade na distribuição geográfica da má nutrição na América Latina e no Caribe. 02 dez. 2021. Disponível em: <https://www.fao.org/brasil/noticias/detail-events/en/c/1334759/>. Acesso em: 15 nov. 2021.

[14] Os efeitos dos agrotóxicos ainda são debatidos pelos cientistas, mas já é documentado que podem causar intoxicação direta das comunidades rurais, poluição dos ecossistemas, problemas respiratórios e déficits cognitivos, afetando especialmente crianças e bebês. Já os alimentos ultraprocessados estão associados a doenças não transmissíveis, como obesidade, diabetes, hipertensão e doenças cardiovasculares. Ver: ENSIA, op. cit.; PUBLIC Eye, op. Cit.; e ACT. Entenda os malefícios dos alimentos ultraprocessados. 17 out. 2020. Disponível em: <https://actbr.org.br/post/entenda-os-maleficios-dos-alimentos-ultraprocessados/18674/>. Acesso em: 15 nov. 2021.

[15] ALLEN, Luke N.; WIGLEY, Simon; HOLMER, Hampus. Implementation of non-communicable disease policies from 2015 to 2020: a geopolitical analysis of 194 countries. The Lancet Global Health, v. 9, n. 11, 01 nov. 2021. Disponível em: <https://www.thelancet.com/journals/langlo/article/PIIS2214-109X(21)00359-4/fulltext>. Acesso em 15 nov. 2021.

[16] HU, Zhanping. What Socio-Economic and Political Factors Lead to Global Pesticide Dependence? A Critical Review from a Social Science Perspective. International Journal of Environmental Research and Public Health, v. 17, n. 21, nov. 2020. Disponível em: <https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7663108/>. Acesso em: 15 nov. 2021.

Outras referências:

NUNES, João. A pandemia de COVID-19: securitização, crise neoliberal e a vulnerabilização global. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 5. 2020. https://doi.org/10.1590/0102-311X00063120

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