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Da elite aos trabalhadores: como têm sido o avanço demográfico da Covid-19 desde sua chegada ao Brasil, de Yasmin Carvalho Gomes Santos

6 outubro 2021

Da elite aos trabalhadores: como têm sido o avanço demográfico da Covid-19 desde sua chegada ao Brasil, de Yasmin Carvalho Gomes Santos

“O Ministério da Saúde confirmou, nesta quarta-feira (26/2), o primeiro caso de novo coronavírus em São Paulo. O homem de 61 anos deu entrada no Hospital Israelita Albert Einstein, nesta terça-feira (25/2), com histórico de viagem para Itália, região da Lombardia.” (UNA-SUS, 27 de Fevereiro de 2020)

O primeiro caso de Covid-19 no Brasil começou assim, espalhado pelos brasileiros que foram ao exterior e passaram o carnaval à beira do Mediterrâneo desfrutando da boa comida e paisagem italiana. 

Não é difícil lembrar, também, dos comentários logo que a pandemia chegou ao Brasil. Era uma “doença de rico” e por mais que outros países mostrassem o quão arrebatadora ela poderia ser, no início, o que prevaleceu foi a sua primeira impressão, desembarcando na ala internacional de Guarulhos.

Em menos de um mês, no entanto, vimos que não era bem assim. Já nas primeiras semanas de março, diversos jornais brasileiros estampavam em seus sites o avanço da covid para muito além daqueles que tinham frequentado aeroportos nos últimos dias e, em 17 de março de 2020, a primeira vítima brasileira foi uma carioca, empregada doméstica, que ao contrário dos seus patrões recém chegados da Itália, não sobreviveu à falta de ar e complicações da doença.  

A alta transmissibilidade, um dos fatores mais marcantes do covid-19, levou o mundo inteiro ao distanciamento social e lockdown de diversas cidades. Apesar de conflitos políticos envolvendo o lockdown completo no Brasil, o que se sucedeu a partir de março foi a reclusão de boa parte da população.

Mas o Brasil, em si, não parou. Mercados continuaram funcionando,e, para aqueles que não deixaram as suas casas e seguiram as recomendações, existiu uma rede de suporte enorme, desde entregadores de aplicativo, caminhoneiros, funcionários das áreas de alimentação, além, claro, dos funcionários da área de saúde. Mas o que esses primeiros têm em comum é o pertencimento a uma classe social que não teve escolha se não por sua vida em risco saindo de casa, ou seguindo as orientações e tendo sua renda ameaçada.

Numa reportagem de abril de 2021 do El País, uma pesquisa do Laboratório do Futuro da Coppe/Universidade Federal do Rio de Janeiro, mapeou os riscos, no início da pandemia, por área de atuação caso nenhuma medida fosse tomada. Os trabalhadores do comércio tinham uma chance 53% maior de contrair o vírus do que o resto da população, contra os 50% dos trabalhadores da área de saúde.

Outro levantamento interessante foi publicado no Le Monde Diplomatique em Dezembro de 2020. Também fazendo o paralelo entre as situações de trabalho e como algumas profissões sofreram mais com o “lockdown” e isolamento social, e o texto de Fernando Mendonça Heck e Lindberg Nascimento Júnior traz esses impactos sobre os trabalhadores de frigoríficos. A função, além de ser considerada essencial durante a pandemia e, portanto, não ter parado, já era extremamente exaustiva e tinha alta rotatividade de funcionários por conta da alta demanda. No Brasil, cerca de 20% dos trabalhadores da área testaram positivo e em alguns lugares do mundo como em Bangladesh o vírus chegou a contaminar mais de metade dessa classe.

Por um espaço de tempo ainda ouvimos falar da covid-19 como uma doença democrática, mas não demorou até que essa ideia caísse. Nos momentos de maior pico da pandemia, em que apenas os serviços essenciais se mantiveram abertos, quem mais sofreu foram pessoas com baixa renda e aqueles que não puderam deixar de trabalhar. A desigualdade no Brasil teve um dos maiores picos durante a pandemia, se tornando um dos epicentros da pandemia na América Latina (DALLARI, 2020) e fica inegável que isso teve uma influência importante na demografia mais afetada durante a pandemia.

Referências:

ALMEIDA, Pauline. Fiocruz relata perfil das vítimas da Covid-19 e desigualdades na pandemia. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/saude/pesquisa-da-fiocruz-relata-perfil-das-vitimas-da-covid-19-e-desigualdades-no-ini/

DALLARI, Pedro. A Crise do Coronavírus não é democrática. Disponível em: https://jornal.usp.br/radio-usp/a-crise-do-coronavirus-nao-e-democratica/

DE MELO, Maria Luisa. Primeira vítima do RJ era doméstica e pegou coronavírus da patroa. Disponível em:  https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/03/19/primeira-vitima-do-rj-era-domestica-e-pegou-coronavirus-da-patroa.htm

JORNAL NACIONAL. Pandemia agrava problema crônico do Brasil: a desigualdade econômica. Disponível em: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2021/02/09/pandemia-agrava-problema-cronico-do-brasil-a-desigualdade-economica.ghtml

MENDONÇA HECK, Fernando; NASCIMENTO JÚNIOR, Lindberg. Covid-19 na trilha do trabalho precário e vulnerável: o caso dos frigoríficos. Disponível em: https://diplomatique.org.br/covid-19-na-trilha-do-trabalho-precario-e-vulneravel-o-caso-dos-frigorificos/

SOARES, Marcelo. Mortes entre caixas, frentistas e motoristas de ônibus aumentaram 60% no Brasil no auge da pandemia. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2021-04-05/caixas-frentistas-e-motoristas-de-onibus-registram-60-a-mais-de-mortes-no-brasil-em-meio-ao-auge-da-pandemia.html

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Mariana Pinheiro Marques
2 anos atrás

Muito importante seu texto, Yas! É triste pensar que alguns tiveram o luxo de manter-se em casa durante toda a pandemia, ao passo que outros tiveram que escolher entre salvaguardar-se do vírus ou colocar comida na mesa. Em matéria publicada pela Folha de São Paulo, cita-se o estudo The Lancet, o qual concluiu que “a vulnerabilidade socioeconômica dos brasileiros foi o fator que apresentou, inicialmente, maior relação com o número de mortes”. A notícia ainda acrescenta que isso se deve ao fato de, nas regiões mais pobres, onde prevalecem trabalhadores informais, ficar em casa durante a pandemia não é uma opção.

Esses fatores evidenciam como a gestão do governo Bolsonaro na pandemia trata com descaso esta população mais ameaçada pela Covid-19, sem estruturar uma rede de apoio sólida capaz de minimizar os impactos do vírus nesta classe social.

bianca de Oliveira
2 anos atrás

O artigo trás pontos muito significativos quanto aos impactos do coronavírus entre as diferentes classes sociais. Muito interessante também são os dados sobre o setor empregatício, como a área de frigoríficos, que foi muito pouco comentada pela mídia. O texto conversa muito com as discussões em aula, sobretudo em relação a forma na qual o governo federal no Brasil criou uma competição falaciosa entre a economia e a saúde. Com o discurso “O Brasil não pode parar”, Bolsonaro incentivou que as atividades econômicas continuassem sem os devidos cuidados de isolamento, alegando que o desemprego mataria mais do que o vírus. O que se observa após um ano e meio de pandemia é justamente a maior taxa de morte entre a população que não teve direito ao lockdown e ao isolamento. Em relação à economia, os índices de desemprego e pobreza aumentaram vertiginosamente. Tais dados mostram que o discurso bolsonarista de colocar um contraponto entre economia e saúde e, ainda, a tentativa de implementar a “imunização de rebanho” apenas colocou em maior risco as populações já economicamente vulneráveis, aumentando as desigualdades sociais.

Pedro S. Priolli
2 anos atrás

Excelente texto Yasmin! É nítido o descaso realizado pelo governo à esses setores de trabalho marginalizados, o privilégio de ficar em casa, buscando evitar a difusão do vírus, foi possível para poucos membros da nossa sociedade. Como você bem indicou, a reclusão ocorreu até certo nível mas o mercado não parou, a ascensão devastadora de pobreza, desemprego e fome no país colocaram e continuam colocando o trabalhador nesse dilema mórbido: trabalhar sob o risco de infecção (isso se obtiver oportunidade de empregabilidade) ou se manter em casa, levando a não obtenção de insumos suficientes para sua própria subsistência ou de sua família. Podemos observar algumas mudanças realizadas por setores governamentais, como é o caso da lei número 458/2021, recentemente sancionada e que obriga a vacinação contra a Covid-19 para todos os funcionários públicos do estado de Pernambuco, que possibilita uma maior segurança para os trabalhadores desse setor e para os membros da sociedade que utilizam do serviços públicos do estado. Ainda assim, pouquíssimas medidas vem sido difundidas, pela extensão nacional, para lidar com os problemas citados acima, ainda que o número de infectados e mortes relacionados à doença tenham diminuído, o trabalhador continua sob constante risco e insegurança, seja pelo vírus, seja pela miséria ou seja pela fome.

Elizeth Lopes Pinheiro
2 anos atrás

Chegamos em um ponto que os grupos que são afetados pelas ondas e picos da doença, não é mais o grupo que chegou por meio do aeroporto de Guarulhos. E, pouco se vê também, os índices de ocupação de leitos, dos grandes hospitais privados ou dos hospitais militares, que durante algum tempo, manteve recursos (leitos, materiais, etc) sem serem utilizados, para os casos dos militares ou funcionários desse grupo, enquanto que a população mais desfavorecida, e que em grande parte, é a maior financiadora por meio dos impostos, estava perecendo na porta dos hospitais públicos hiperlotados. O que eu vejo é que no Brasil, todo tipo de ameaça adquire um caráter eugenista.

Tomás Mota
2 anos atrás

Gostei muito do texto, Yasmin! O maior problema da realidade pandemia brasileira foi como essa propagação não-democrática do vírus foi usada de forma maléfica pelo governo federal, que intencionalmente atrapalhou o distanciamento social, principalmente de classes mais pobres. As ações do presidente da República a da escória que o cerca não foi meramente ideológica e cega perante suas consequências, todos sabiam quais os reflexos e as desigualdades que esses iriam ter uma vez que chegassem a população geral brasileira. Graças a CPI da COVID-19 hoje sabemos que existia um incentivo econômico por trás desse genocídio que assola o povo brasileiro. Enquanto todos os países, de uma maneira ou de outra, lidam com a desproporcionalidade da propagação do Corona Vírus, a população brasileira é vítima refém de seu governo que utiliza dessa como arma contra aqueles que historicamente foram marginalizados na nossa sociedade.