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Como o isolamento mudou nossa percepção sobre o tempo, de Filipe dos Santos Rodrigues

19 outubro 2021

Como o isolamento mudou nossa percepção sobre o tempo, de Filipe dos Santos Rodrigues

Faz quase dois anos desde que o primeiro caso de Covid-19 foi registrado, mudando nossa relação com diversas coisas essenciais, família, amigos, trabalho, e talvez menos obviamente, a nossa relação com o tempo. Esse período, inegavelmente longo, tem sido percebido de forma distinta pelas pessoas, podendo ter sido muito rápido para uns ou muito devagar para outros. Entretanto, apesar da ideia de que existe uma linearidade no tempo, a percepção humana da passagem de horas, dias, meses e anos é completamente dependente de quais são as emoções produzidas durante os períodos (OGDEN, 2020, p. 2). Então, nesse sentido é necessário reconhecer que não existe uma consistência, tudo depende do momento de cada um, as primeiras semanas de confinamento podem ter passado muito rapidamente, mas as últimas podem parecer durar uma eternidade sem fim.

Na mitologia grega o tempo é representado por duas figuras, o titã Cronos, representação do tempo físico, que não é possível de controlar e, portanto, é objetivo; e Kairós, o deus do tempo como nós sentimos os momentos, uma ideia subjetiva definida pelas experiências individuais. Como Felix Ringel busca explicar em seu artigo “Can Time be Tricked?” de 2016, a maior parte dos estudiosos sobre o conceito concorda com máxima de que o tempo é apenas uma sucessão de “antes” e “depois” (p. 24) e, dessa maneira, não existe nenhum meio para manipular essa ordem. Porém, como exposto por Ringel, o que pode ser alterado é a construção e conteúdo da sucessão de eventos, mudando como assimilamos o passar do tempo. É nesse segundo entendimento que a pandemia agiu ao quebrar a rotina, ritmo, emoções e as interações sociais como elas eram.

A ausência de novas experiências marcantes, como casamentos, festas de aniversário ou uma viagem são fatores importantes para essa distorção. Como Claudia Hammond, autora do livro “Time Warped: Unlocking the Mysteries of Time Perception”, explica em uma matéria para revista Wired[1], o tempo passar rápido ou devagar também é um reflexo de nossas memórias. Assim, com a impossibilidade de viver coisas novas ou marcantes não criamos esses momentos para se lembrar vivendo apenas repetidas semanas de rotina ordinária.

A conclusão de um artigo produzido por um grupo de pesquisa da UFABC aponta como os resultados de estudos investigando a experiência com tempo durante o período de lockdown indicam que, mesmo quando estão disponíveis instrumentos de marcação temporal, como relógios, as mudanças de percepção são correlacionadas ao isolamento social (CRAVO et al, 2021, p. 34-35). Outros autores buscaram entender quais fatores estão relacionados com a distorção dos eventos na nossa mente, Ogden afirma que, além das emoções a capacidade cognitiva, psicopatologia, ingestão de drogas e carga cognitiva são alguns desses (2020, p. 2).

No Brasil, Cravo et al. (2021) utilizaram as medidas de distorção de tempo de Wittmann e Lehnhoff (2005, apud CRAVO et al. 2021): a expansão de tempo, caracterizada pela sensação de que o tempo parece não passar, muitas vezes relacionada com o tédio; e a pressão no tempo, a sensação de que o tempo está  passando muito rapidamente, não restando tempo suficiente todas as atividades diárias. Conforme a apuração do estudo, segundo os autores, os principais motivadores da sensação de expansão do tempo são psicologicamente orientados, entre eles estão a solidão, depressão e ausência de positividade. Pelo lado contrário, ainda segundo os autores, a sensação de pressão no tempo é resultado de alguns fatores psicológicos como estresse constante e também de quanto os participantes estavam satisfeitos com suas interações sociais (2021, p. 38).

Os resultados obtidos nas pesquisas sobre o efeito do isolamento social variam dependendo do local de pesquisa (foram considerados estudos publicados no Reino Unido, Itália, França e Brasil) e perfil socioeconômico dos participantes do estudo. Entretanto, o resultado mais comum, apresentado em todos os estudos internacionais, foi de que o lockdown despertou a sensação de desaceleração do tempo (MARTINELLI et al., 2021).Dentro dessa perspectiva, segundo Zakay (1992, apud CRAVO et al, 2021, p. 36) duas esferas explicam a passagem mais devagar do tempo. A primeira é a de relevância temporal, que mede o quão importante é a ocorrência de um evento e a segunda é a incerteza temporal, que mede o quão certo é o momento do evento. Em conjunto, essas duas dimensões são os parâmetros para a consciência temporal, que determina o quão lentamente o tempo parece passar.

No contexto da pandemia, as ideias de Zakay explicam completamente a ansiedade no desejo do fim desse momento e a incerteza de não saber quando acontecerá, ampliando o sentimento de que estamos vivendo em isolamento social faz muito mais tempo do que a realidade. Ao final, o consenso entre os pesquisadores é que as emoções são cruciais para guiar como interpretamos a passagem do tempo. Assim, novamente, é provada a importância de direcionar esforços para a saúde mental, priorizando o bem-estar e uma rotina saudável em busca de normalizar a situação internamente ao mesmo tempo que buscamos combater o vírus com as vacinas.

Referências

PARDES, Arielle. There Are No Hours or Days in Coronatime. Wired, New York, Culture, Ago 5, 2020. Disponível em: The Coronavirus Has Warped All Sense of Time | WIRED.

CELLINI, N. CANALE, N. MIONI, G. COSTA, S. Changes in sleep pattern, sense of time and digital media use during COVID-19 lockdown in Italy. J Sleep Res. 2020 Aug;29(4):e13074. doi: 10.1111/jsr.13074. Epub 2020 May 15.

CRAVO, Andre Mascioli. AZEVEDO, Gustavo B. de. BILACCHI, Cristiano M.. BARNE, Louise C.. BUENO, Fernanda D.. CAMARGO, Raphael Y.. MORITA, Vanessa C.. et al. Time Experience in Social Isolation: A Longitudinal Study During the First Months of COVID-19 Pandemic in Brazil, 2021. doi:10.31234/osf.io/6jg4r

DROIT-VOLET, S. GIL, S. MARTINELLI, N. et al. Time and Covid-19 stress in the lockdown situation: Time free, «Dying» of boredom and sadness. PLoS One. 2020;15(8):e0236465 (2020). doi:10.1371/journal.pone.0236465

MARTINELLI, N. GIL, S. BELLETIER, C. CHEVALÈRE, J. DEZACACHE, G. HUGUET, P. DROIT-VOLET, S. Time and Emotion During Lockdown and the Covid-19 Epidemic: Determinants of Our Experience of Time? Front. Psychol, 2021. 11:616169. doi: 10.3389/fpsyg.2020.616169

MOROSANU, Roxana. RINGEL, Felix. Time-Tricking, The Cambridge Journal of Anthropology 34, 1, 2016: 17-21, https://doi.org/10.3167/ca.2016.340103

OGDEN, RS. The passage of time during the UK Covid-19 lockdown. PLOS ONE 15(7): e0235871 (2020). https://doi.org/10.1371/journal.pone.0235871

RINGEL, Felix. Can Time Be Tricked?, The Cambridge Journal of Anthropology 34, 1 (2016): 22-31. https://doi.org/10.3167/ca.2016.340104

RINGEL, Felix. Coronavirus: how the pandemic has changed our perception of time. The Conversation, May 28, 2020. Disponível em: Coronavirus: how the pandemic has changed our perception of time (theconversation.com).

WITTMANN, Marc. “Subjective Passage of Time during the Pandemic: Routine, Boredom, and Memory”. KronoScope 20.2 (2020): 260-271. https://doi.org/10.1163/15685241-123414 71 Web.


[1] There Are No Hours or Days in Coronatime. https://www.wired.com/story/coronavirus-time-warp -what-day-is-it/

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Victor Ferreira Caruzzo
2 anos atrás

Tema muito único e complexo de pensar, é realmente uma mudança muito impactante para a forma como enxergamos o mundo. Reforça o quão permanentes são os efeitos da pandemia para o mundo em que vivemos, mexendo não só com as estruturas politicas e sociais, mas mais ainda psíquicas.
Fico me questionando como isso irá influenciar no nosso retorno à rotina no futuro, agora que reestruturamos nossas dimensões de tempo. Será um grande desafio se readaptar ao ritmo frenético da “vida normal”, desde saber como alocaremos as nossas energias ao longo do dia, como nosso cérebro responderá emocionalmente aos acontecimentos. Como dito por você mesmo, é fundamental, mais do que nunca, direcionar esforços para a saúde mental.

Jonelle Olivia
2 anos atrás

Me identifico com alguns argumentos neste artigo. Nos primeiros seis (6) meses da pandemia, eu havia perdido completamente a noção do tempo e, embora estivesse confinado em minha casa com o que parecia ser mais tempo disponível, não conseguia me organizar direto para maximizar este tempo “adicional” que eu tinha mesmo possuindo uma agenda fixa. Foi então me ocorreu que a pandemia e o subsequente quarentena estavam prejudicando a minha saúde mental e minha produtividade. Fiquei dias tentando me convencer de que essa era a chance de fazer tudo que eu sempre quis fazer, mas nunca tive tempo com a esperança que me ajudaria a vencer o desânimo. No entanto mesmo enchendo meus dias com atividades que normalmente nunca participava, ainda senti que o tempo estava sendo desperdiçado. Não tinha como mensurar a produtividade mais, e o tempo que se arrastava indefinidamente não ajudava o estado ansioso em que eu estava. Foi só quando saí dessa mentalidade de falsa positividade que veio sendo promovido principalmente pelos influenciadores online que eu consegui focar na minha saúde mental. Percebi que no momento em que nós estamos é impossível gerenciar o nosso tempo de uma forma que tudo caminhe da forma que queremos. Nunca tivemos controle do tempo e a pandêmia reforçou aquilo. É o tempo que nos controla e que determina o nosso ritmo