Após quase dois anos de pandemia e mais 600 mil mortos no país, não é inédito evidenciar que a emergência do vírus em nossa realidade fomentou problemáticas que excedem o próprio campo sanitário. Nesse sentido, após o início da pandemia no Brasil, sua população vem convivido com um quadro alarmante de altos níveis de desemprego, pobreza e fome, além de um cenário complexo e polêmico de isolamento social com uma notória precarização de saúde mental e produtividade. Dentre todos estes fatores, novos estudos e perspectivas vem sendo formuladas quanto a violência vivenciada pelas mulheres, dando ênfase aos elementos pandêmicos que compõem esse contexto perverso, assim como quais seriam as ações e mobilizações eficazes para a prevenção de tal vivência.
Para tal, trabalhos como “Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil” e a VAWG Data Collection during COVID-19 existem para “projetar políticas e programas baseados em evidências que atendam às necessidades das mulheres, reduzam os riscos e mitiguem os efeitos adversos durante e após a pandemia” (1). Portanto, como é de conhecimento, a existência de tal problemática injusta não é de surpresa para a nossa sociedade, contudo, o cenário singular em que vivemos impõe à população feminina condições que aprofundam e agravam a situação. Por exemplo, as mulheres convivendo mais tempo com seus agressores, a perda de renda familiar, o aumento das tensões em casa, o maior isolamento e o consequente distanciamento de uma potencial rede de proteção são identificados como alguns dos fatores centrais para este agravamento. (UN WOMEN, 2021; RAUHAUS et al, 2020)
Tais fatores não realçam apenas os possíveis perigos impostos às vítimas, mas também expõem as mudanças de rotina forçadas e tóxicas sob a qual este conjunto é inserido, levando a precarização constante da saúde mental, emocional e física da mulher. Para explicitar, podemos apontar alguns dos dados demonstrados pelo relatório citado – Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil – que reporta que 52,6% dos entrevistados permaneceram mais tempo em casa, enquanto que para 44,4% o período da pandemia de covid-19 significou também momentos de mais estresse no lar, tendo as mulheres os maiores níveis de estresse em casa durante o período (50,9% em comparação com 37,2% dos homens). Agregando, como foi apontado anteriormente, esta convivência contínua mantida no lar, tendo como fator a constante interação da vítima com seu(s) agressor(es), contribui à perpetuação das violências, sendo isto demonstrado no mesmo relatório, onde 21,8% das vítimas afirmam que a maior convivência com o agressor, em função da pandemia de covid-19, contribuiu para essas experiências desumanas.
Dado isso, vale ressaltar que o mesmo estudo indica que “72,8% dos autores das violências sofridas são conhecidos das mulheres” (2) sendo pelo menos 25% destes conjugues, companheiros ou namorados, 18% ex-companheiros/conjugues/namorados e pelo menos 20% familiares da vítima. Estes dados escancaram o lar como principal espaço de risco para as mulheres, com quase 50% das entrevistadas relatando que as piores violências são vivenciadas em casa, fato que se torna ainda mais alarmante frente a um cenário onde o isolamento social seja algo fundamental. Nessa perspectiva, embora se tenha um país onde 1 em cada 4 mulheres brasileiras, acima de 16 anos, afirma ter sofrido algum tipo de violência ou agressão durante a pandemia de covid-19, as mulheres encontram-se numa maior dificuldade de realizar denúncias e/ou pedir socorro para indivíduos de confiança, visto que o isolamento leva à maior convivência com seu agressor, corroborando para a ampliação da manipulação física, psicológica e emocional sobre a vítima, além de dificultar o acesso direto às instituições e redes de proteção proporcionadas.
Dessa forma, frente ao contexto apresentado, é evidente que a condição de pandemia agravou consideravelmente uma vivência já extremamente precária e desumana encarada pelas mulheres brasileiras, isso é, a vítima é submetida ao constante estresse da crise sanitária e seus demais prejuízos – vis-à-vis pobreza, desemprego, fome e aumento da carga doméstica de trabalho (tarefa socialmente imposta à mulher) – além de conviver de forma contínua e forçada com os conhecidos que à violentam, humilham e destratam, levando ao aumento da complexidade quanto ao enfrentamento, proteção e prevenção da dada violência. Frente a isso, a existência de estudos, relatórios e outros materiais semelhantes aos evidenciados contribui para a “produção de evidências e informações que sirvam à formulação e implementação de ações públicas e privadas de enfrentamento da violência contra a mulher” (2), moldando caminhos para que possamos lidar com a complexidade do problema demonstrado. Por fim, mesmo com trabalhos excepcionais que tenham essa proposta ao mesmo tempo que garantem a segurança das vítimas entrevistadas, é essencial que a abordagem prática de soluções para essa questão se torne uma prioridade na agenda brasileira, visto que a violência contra mulheres e meninas segue sendo uma das piores e, infelizmente, mais comuns violações de direitos humanos em nossa sociedade.
Referências:
(1) UN Women. Violence against women and girls data collection during COVID-19. Disponível em:< https://www.unwomen.org/en/digital-library/publications/2020/04/issue-brief-violence-against-women-and-girls-data-collection-during-covid-19>. Acesso 17 out 2021.
(2) Fórum Brasileiro de Segurança Pública; Instituto de Pesquisas Datafolha. Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil. Disponível em:< https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/06/relatorio-visivel-e-invisivel-3ed-2021-v3.pdf>. Acesso 17 out 2021.
(3) RAUHAUS, Beth; SIBILA, Deborah; JOHNSON, Andrew. Addressing the Increase of Domestic Violence and Abuse During the COVID-19 Pandemic: A Need for Empathy, Care, and Social Equity in Collaborative Planning and Responses. American Review of Public Administration, 2020. Disponível em: <https://journals.sagepub.com/doi/full/10.1177/0275074020942079> Acesso 18 out 2021.
Pedro, você trouxe um tema muito relevante. A pandemia, se analisada por um recorte de gênero e interseccional, teve consequências ainda mais assustadoras para uma parcela específica da população. As mulheres que vivem com seu agressor dentro de casa tiveram que lidar com o aumento da situação de violência, além de outras nuances – como o cuidado dos filhos em tempo integral, também isolados e sem as escolas. O Brasil é um dos países com maiores números de violência doméstica contra mulheres, mas não falamos o suficiente disso.