Nas últimas semanas, o streaming Amazon Prime lançou a segunda temporada da série “Modern Love”. Nela, cada episódio conta uma história diferente inspirada em amores da vida real. O terceiro capítulo nos apresenta a história de Paula (Lucy Boynton) e Michael (Kit Harington), duas pessoas, inicialmente estranhas entre si, que viajavam em um trem para Dublin. Conforme a história é contada, percebemos que se passa, temporalmente, no mês de março de 2020, início da pandemia do Covid-19. Esse fato fica ainda mais claro quando os personagens começam a conversar e se questionam coisas como “quando tempo você acha que isso vai durar?”, e a resposta sempre era “minha faculdade/emprego deu duas semanas de afastamento, então provavelmente quinze dias”.
Ao fim da viagem, os dois, agora apaixonados, decidem não trocar números ou endereços, mas sim, marcar de se encontrar em exatas duas semanas naquela plataforma de trem e voltar juntos para as cidades em que estudam e trabalham, visto que esse era o prazo esperado para o fim da pandemia. Chegado o grande dia, nenhum dos dois conseguiram chegar à estação, pois na cidade existiam vários bloqueios sanitários que não permitiam a circulação de pessoas além de dois quilômetros de suas residências.
Quando assisti a esse episódio, fiquei pensando sobre como as medidas tomadas para tentar evitar a transmissão do vírus da COVID-19, no início, eram muito mais intensas do que hoje. No Brasil, não foram tomadas medidas, como na Irlanda, que impediam as pessoas de se afastarem a determinada distância de suas casas – exceto em algumas poucas cidades como Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, onde, por algumas semanas, era necessário possuir um documento que explicasse a saída caso um policial realizasse abordagem, ou ainda, em menor número, em cidades como Araraquara, também no interior de São Paulo, em que houve lockdown por alguns dias- mas certamente foram feitas outras, principalmente provenientes de outras autoridades que não a central, como governos estaduais e municipais. Como esquecer o fechamento de lojas, bares e restaurantes? O cancelamento de todas as cirurgias eletivas, dos voos nacionais e internacionais e até viagens de ônibus interestaduais? Me lembro de colegas que ficaram presos em São Paulo por conta das fronteiras com o Rio de Janeiro estarem fechadas. E tudo isso em um momento em que as médias de mortes diárias eram de dezenas, centenas de pessoas no país.
Meses se passaram e o número de óbitos diários foi crescendo e crescendo, alcançando a triste marca de milhares. Entretanto, em um movimento paradoxal, o que também parece que passou foi o medo de grande parte das pessoas. As mesmas que tinham medo de abrir as janelas de casa por pensar que o vírus poderia entrar com o vento, agora saem de casa por lazer, para ir a lojas, bares e restaurantes, que tão pouco seguem impedidos de funcionar, graças às flexibilizações. A vontade de passar o feriado na praia não mais é um sonho distante por conta do vírus, mas um plano real que levou o Departamento de Estradas e Rodagens (DER) a prever cerca de 806 mil veículos em direção à Baixada Santista no feriado de Independência do Brasil.
Tendo isso em vista, podemos estabelecer uma ligação direta, também, com as medidas de contenção do vírus tomadas pelos governos, ou melhor, não tomadas. O fato do líder principal da nação constantemente negar ou menosprezar o perigo da doença e ser publicamente contra quaisquer medidas sanitárias que visem diminuir o contágio passa a ideia de que o país está bem e protegido, e que não há problema em se aglomerar em bares, por exemplo.
Por fim, é esperado que, com o avanço da vacinação e, consequentemente, da ampliação da imunidade da população, possamos retornar cada vez mais para a vida pré-março 2020. Mas o fato é que centenas de pessoas continuam perdendo suas vidas por conta do vírus da COVID-19 todos os dias em nosso país e isso não mais impede que algumas pessoas saiam de casa a lazer. Nesse sentido, o questionamento que faço é: as pessoas realmente acreditam estar protegidas pelas vacinas e, por isso, perderam o medo, ou apenas, independentemente do motivo, normalizaram o caos em que vivemos?
Referências
BRASIL tem 296 mortes por Covid-19 em 24 horas; média móvel de óbitos está em queda há 14 dias. G1, 2021. Disponível em https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2021/09/06/brasil-tem-296-mortes-por-covid-19-em-24-horas-media-movel-de-obitos-esta-em-queda-ha-14-dias.ghtml . Acesso em 07 de set. de 2021
CHAVES, Karla. Após lockdown, Araraquara não registra mortes por Covid-19 em 24 horas. CNN Brasil, São Paulo, 26 de mar. de 2021. Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/apos-lockdown-araraquara-nao-registra-mortes-por-covid-19-em-24-horas/ . Acesso em 09 de set. de 2021.
COM lockdown, sair de casa será permitido em 5 situações. A cidade on, 2021. Disponível em https://www.acidadeon.com/ribeiraopreto/cotidiano/cidades/NOT,0,0,1592267,com-lockdown-sair-de-casa-sera-permitido-em-5-situacoes.aspx . Acesso em 09 de set. de 2021.
SP: 1º feriadão com praias liberadas deve ter 4,5 milhões de carros nas estradas. Isto é dinheiro, 2021. Disponível em https://www.istoedinheiro.com.br/sp-1o-feriadao-com-praias-liberadas-deve-ter-45-milhoes-de-carros-nas-estradas/. Acesso em 07 de set. de 2021.
Ventura D. et al. (2021) The catastrophic Brazilian response to covid-19 may amount to a crime against humanity. BMJ Opinion. April. https://blogs.bmj.com/bmj/2021/04/05/the-catastrophic-brazilian-response-to-covid-19-may-amount-to-a-crime-against-humanity/
Obrigada pelo post, Guilherme! O tema é muito interessante e permite links que o tornariam mais informativo. Um ponto é que já há dados disponíveis sobre a propagação da Covid-19 no Brasil em decorrência da ausência de barreiras intermunicipais e interestaduais. Veja esta linda conferência do Prof. Miguel Nicolelis na abertura do 8º Encontro da ABRI https://www.youtube.com/watch?v=s5dx5sQNbvo Os mapas que ele apresenta são incríveis! Outro ponto importante é que já temos uma literatura densa sobre os aspectos comportamentais diante da pandemia. Há muitas formas de linkar esta reflexão no teu artigo. Uma delas é perguntar o que significa esta palavra “normalizar”. O que pode ser ou não considerado normal? A referência maior neste assunto é o genial Georges Canguilhem, orientador de Foucault – aqui há uma síntese bacana do Safatle sobre o normal e o patológico no pensamento do autor https://www.scielo.br/j/ss/a/VfqSSxvQ7WBQyrKKbJwjpWx/?lang=pt Mas há material bem mais simples e acessível, embora também profundo. Dá uma olhada nesta entrevista do Christian Dunker: https://www.bbc.com/portuguese/geral-52160230 Acho que com estes pontos atendidos podemos pensar em um novo post, pode ser?
Olá professora Deisy, muito obrigado por seu comentário e pela contribuição com os links para o assunto. Achei bastante interessante os textos e a conferência. Com certeza as barreiras inermunicipais/estaduais, assim como outras medidas tomadas ao redor do mundo, tiveram impactos na disseminação da doença e, consequentemente, do número de perdas que tivemos. De toda forma, o texto busca focar em como as pessoas normalizaram, e no contexto essa palavra poderia ser alterada, sem perca de sentido, por “aceitaram” a situação em que vivemos conforme o tempo foi passando e as vidas perdidas foram, cada vez mais, se tornando apenas números que, muitas vezes, não assustam mais. Por conta disso, escolhi não focar tanto nos motivos que geraram as mortes ou ações que poderiam tê-las diminuído.
Obrigado!
Olá Guilherme, temo que o “caos” se torna congênito nas nossas mentes com o passar do tempo. Apesar de você bem lembrar o governo federal na construção desse caminho até aqui, este desgaste no senso de risco da população é um problema mundial. Aqui no Brasil, a queda da média móvel de casos e mortes nas últimas semanas após o avanço da vacinação (finalmente!), próxima a patamares de momentos de 2020, gera muito alívio. Porém, ainda estamos em centenas de mortes diárias (200-600). Em uma das suas lives recentes, o Átila Iamarino comenta uma opção desagradável de futuro: após 2 anos e com a população vacinada, a barra para o “sentir caos” está tão exigente, já que a morte se tornou cotidiano, que a preferência geral pode ser a de retomar a vida anterior ao Covid às custas de mortes constantes de grupos mais vulneráveis como os idosos, por exemplo.
Muito interessante o seu post, Guilherme! Também me choca muito perceber o quanto as pessoas se tornaram cada vez mais insensíveis às mortes na medida em que a pandemia foi avançando. Lembro-me como se fosse ontem do dia em que foi anunciada a primeira morte por Covid-19 no Brasil e da sensação de pânico que tomou conta dos lares e as famílias. Hoje, as mesmas famílias assistem a centenas de mortes diárias no noticiário sem esboçar qualquer reação. É desesperador imaginar um cenário futuro em que se opte voluntariamente por deixar que uns morram para que outros possam viver “normalmente”, conforme o colega Juan citou no comentário acima.