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Efavirenz x. Vacinas contra Covid: a mudança do posicionamento sobre patentes, de Ariel Motta Costa

21 outubro 2021

Efavirenz x. Vacinas contra Covid: a mudança do posicionamento sobre patentes, de Ariel Motta Costa

Desde 1996, o Brasil tem sido referência no tratamento do HIV/Aids por disponibilizar o atendimento, acompanhamento e medicação de forma gratuita pelo Sistema Único de Saúde. Contudo, no início da década de 2000, havia uma grande dificuldade no financiamento deste programa, segundo dados extraídos de “Os direitos humanos como fundamentação para a “quebra de patentes” dos medicamentos para AIDS: posição do Brasil” (TRINDADE, 2013), cerca de 80% dos recursos eram utilizados para importar medicamentos de referência. Isso significava que, dos 19 remédios utilizados no coquetel naquela época, os 10 importados consumiam a maior parte do orçamento disponível. Esse problema foi enfrentado diversas vezes pelos Ministros da Saúde, com negociações bem sucedidas na diminuição do preço dos fármacos Nelfinavir e Kaletra em 2001 e 2003. Porém, já em 2007, as negociações para a redução do custo de importação do Efavirenz estavam em um impasse, sem que o governo conseguisse a diminuição necessária para manter a medicação utilizada por 38% dos pacientes que estavam sendo atendidos na rede pública.

Essa barreira só foi transposta com o decreto de licenciamento compulsório publicado em 04 de maio daquele ano, que permitia ao governo comprar e/ou importar medicamentos genéricos produzidos a partir da fórmula patenteada do Efavirenz. Essas transações deveriam atender unicamente a demanda do setor público de saúde, ressaltando o caráter não comercial da ação, além do limite claro de tempo para sua utilização e o pagamento de uma porcentagem (1,5%) do custo para o titular da patente. Obviamente, essa medida enfrentou duras críticas do laboratório proprietário e do governo onde ele é sediado (EUA), que alegavam que a medida comprometeria a qualidade e segurança dos medicamentos distribuídos ao público, enfraqueceria a proteção jurídica das patentes e seria um desincentivo a novos investimentos da indústria farmacêutica no país.

Para justificar suas ações, o governo brasileiro se apoiou na lei de propriedade industrial nacional (nº 9.279/1996), que estabelece o princípio da função social da propriedade intelectual. Dessa forma, a proteção do direito à propriedade só é efetiva se o interesse social e o desenvolvimento econômico e tecnológico do país são promovidos, ou seja, a vontade pública pode se impor sobre o direito de propriedade em casos de emergências ou outras externalidades negativas. Além disso, o acordo Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS), que rege o sistema de patentes do âmbito internacional, reconhece medidas de licenciamento compulsório como salvaguarda para a saúde e interesse público. Como a pandemia do vírus HIV era um desafio urgente, com o número de novos casos e pacientes necessitando de tratamento se expandindo, o decreto, mesmo questionado, foi aceito sem sanções internacionais.

Com o passar do tempo, é possível perceber que as justificativas utilizadas para criticar a medida não se tornaram realidade: os remédios distribuídos não eram menos eficazes ou seguros que os de referência; o sistema de reconhecimento de patentes no Brasil continua a funcionar normalmente; e, embora haja um forte crescimento na indústria de genéricos nacional, farmacêuticas estrangeiras continuam a dominar uma fatia significativa do mercado brasileiro. Além disso, enquanto teve o financiamento adequado, o programa brasileiro de combate e prevenção ao HIV/Aids foi um sucesso no controle da epidemia e no apoio aos cidadãos infectados.

Devido a essa experiência de sucesso, tanto na negociação com farmacêuticas quanto no licenciamento compulsório, é surpreendente o posicionamento brasileiro na nova discussão sobre a função das patentes de medicamentos durante uma emergência de saúde global, o caso das vacinas contra a COVID-19. Ao invés de apoiar outros parceiros no mundo em desenvolvimento, como Índia e África do Sul, que historicamente se aliaram em demandas contra o império inquestionável dos direitos de propriedade intelectual e a favor do maior acesso a medicamentos para países de renda média e baixa, o governo brasileiro buscou uma “terceira via”.

Negando-se a apoiar a Declaração que buscava desobrigar os países de protegerem as patentes e outros direitos de fármacos relacionados ao combate à doença, surpreendentemente endossada até pelos EUA, o governo defende que o verdadeiro problema da falta de vacinas não pode ser resolvido apenas pelo licenciamento compulsório. Já que, os laboratórios farmacêuticos de países do 3º mundo não estariam preparados para produzirem imunizantes em grande escala e levariam anos para se adaptar aos requisitos necessários, sendo ineficazes para combater a emergência atual. A solução mais eficiente seria a realização de acordos com os laboratórios criadores das diferentes vacinas para aumento da produção, transferência de tecnologia e uma melhor distribuição das doses.

No entanto, esses discurso a favor dos grandes laboratórios e da melhora da logística de fornecimento de imunizantes mundialmente e contra a flexibilização dos direitos de propriedade é contestável quando o atraso no início do cronograma de vacinação brasileiro é recordado: o governo federal ignorou repetidas tentativas de negociação com a Pfizer, rechaçou a eficácia e segurança da Coronavac e entrou tardiamente e de maneira restrita no consórcio global de vacinas mediado pela OMS, o Covax Facility. É preciso se perguntar se é realmente a preocupação com a capacidade produtiva de laboratórios de genéricos que dita o posicionamento do governo acerca dos imunizantes.

Bibliografia:

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Daniele da Silva dilly
2 anos atrás

Este é um tema extremamente relevante para discussão da saúde global. Do meu ponto de vista acredito que as patentes da indústria farmacêutica não trazem benefício algum para a população mundial. A principal justificativa de que sem as patentes a indústria não teria nenhum motivo para produzir e investir em pesquisas científicas é facilmente desmontado, como foi muito bem exemplificado no artigo, ao olharmos os números de consumo de medicamentos após a introdução dos genéricos no Brasil. E o motivo é simples: os medicamentos genéricos não tem uma concorrência direta com os medicamentos tradicionais, pelo contrário, eles ampliam o mercado, fazendo com que pessoas que antes não tinham acesso possam ter um tratamento medicamentoso adequado. O que acontece, e é o que de fato preocupa a indústria, é possibilidade de redução do seu lucro com uma concorrência mais leal. E ver o governo brasileiro, que já teve grandes avanços no tema, ecoando sua voz ao lado dessa indústria é revoltante. Um governo que deveria trabalhar por sua população mas que está a serviço de grandes empresários (que nem brasileiros são). Acredito que nada deve vir antes do bem estar social, muito menos a patente de vacinas em plena pandemia. Vivemos em uma sociedade na qual são produzidos alimentos suficientes para todos, mas pessoas ainda morrem de fome, existe vacina para hepatite, mas pessoas ainda morrem da doença, uma sociedade na qual bilionários viajam até o espaço e muitos não possuem casa. Somente quando essa lógica for invertida poderemos ter grandes avanços na humanidade.