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Nota da Coordenação do GT sobre o adiamento da conclusão do acordo sobre pandemias

26 maio 2024

Nota da Coordenação do GT sobre o adiamento da conclusão do acordo sobre pandemias

Leandro Viegas, Deisy Ventura, Luiz Augusto Galvão, Eduardo Hage Carmo, Luana Bermudez, Paula Reges, Isabela Serra e Paulo Marchiori Buss

Esta semana terá início a 77ª Assembleia Mundial da Saúde (AMS), órgão máximo da Organização Mundial da Saúde (OMS), que deveria adotar um novo instrumento internacional sobre preparação, prevenção e resposta a pandemias. Anunciado em março de 2021 pela Direção da OMS e por líderes de diversos países, principalmente europeus, o acordo buscaria evitar que as disfunções da resposta internacional à covid-19 se repetissem nas próximas pandemias, e por isto seria dotado de caráter obrigatório.

            Em dezembro de 2021, uma AMS extraordinária instituiu o Órgão Intergovernamental de Negociação (INB, na sigla em inglês), composto por representantes dos Estados-membros, que foi encarregado de conduzir a elaboração do acordo. No entanto, apesar dos esforços empreendidos pela OMS durante mais de dois anos, não houve consenso no INB para a submissão de um projeto à Assembleia no prazo previsto.

            Negociado ao longo de nove encontros do INB, após consultas técnicas e alguns espaços de participação da sociedade civil, o texto do acordo teve avanços consideráveis em diversas áreas, como a equidade na prevenção e resposta a pandemias, o fortalecimento da OMS e o acesso à informação. No entanto, persistiram divergências em tópicos sensíveis como transferência de tecnologia, financiamento e PABS (Patógenos, Acesso e Benefícios).

            Em vista da extensa lista de temas em aberto ao final da última rodada de negociações, que representavam cerca de 300 parágrafos, decidiu-se prolongar as conversas na última semana para buscar algum consenso que pudesse ser levado à apreciação da AMS. Na avaliação de diversas entidades que acompanham o desenrolar das negociações em Genebra, apesar do grande número de parágrafos em aberto, houve progressos em diversas seções do texto, tais como no Capítulo 1 (Artigos 1 a 3, sobre uso de termos, objetivos e princípios), no Capítulo 2 (Artigos 4 a 20, que envolviam equidade em toda a cadeia de prevenção, preparação e resposta), nos artigos 7 (força de trabalho), 14 (Fortalecimento regulatório), 18 (Comunicação e informação pública), 19 (Cooperação internacional e apoio para a implementação) e 20 (Financiamento sustentável), assim como no Capítulo 3 (Artigos 21 a 27), sobre arranjos institucionais e cláusulas finais

            No entanto, divergências que refletem uma clivagem entre os interesses do Norte e do Sul Global impediram a conclusão do texto que seria submetido à AMS. Não foi possível superar controvérsias principalmente sobre o enfoque “Uma só saúde” (em inglês, One Health, previsto no artigo 5), os dispositivos sobre transferência de tecnologias (artigo 11) e, sobretudo, o PABS (artigo 12).

            A inserção de uma seção sobre One Health no acordo sobre pandemias conta com forte apoio dos países desenvolvidos. Embora seja inquestionável a necessidade urgente da adoção de medidas que atuem na interface entre estas dimensões, entre elas o aperfeiçoamento da vigilância sanitária e fitossanitária em relação ao comércio de produtos agrícolas, a preocupação de alguns Estados em desenvolvimento é que possa haver uso indevido de novas obrigações e novos mecanismos de controle, com o intuito produzir obstáculos ao comércio motivados pelo protecionismo e outros interesses dos países ricos. Em contrapartida, os países ricos argumentam, diante de exemplos como o do atual surto de H5N1, que a OMS pode vir a declarar tardiamente uma emergência situada nesta interface, caso o tema não conste do instrumento de forma objetiva.

            No que tange às transferências de tecnologia, as resistências giram em torno das implicações dos direitos de propriedade intelectual na governança do acordo de pandemias. Enquanto os países em desenvolvimento sustentam que as transferências de tecnologia devem obedecer termos acordados mutuamente, os países desenvolvidos defendem que elas se orientem pelo voluntarismo.

            No que se refere ao PABS, a clivagem entre o Norte e o Sul refere-se à demanda pelo acesso rápido a patógenos, às suas sequências genéticas e o voluntarismo na distribuição de produtos de saúde, como vacinas, e na repartição de benefícios. Embora tenha avançado a ideia de que o rápido compartilhamento de dados e informações sobre sequências genéticas de patógenos deveria estar associado a uma repartição de benefícios equitativa, o assunto seguiu controverso nas últimas semanas, sobretudo no que se refere ao percentual de doses de vacinas que seriam doados à OMS e à regulação de contratos, aos direitos de propriedade intelectual e à repartição de benefícios monetários. Ficou evidente, ainda, o interesse dos negociadores em relacionar esta seção aos resultados das negociações no âmbito da Convenção de Diversidade Biológica.

            Quanto à posição do Brasil, embora excluído do rol de lideranças que propôs a adoção do novo instrumento em 2021, o país conquistou um espaço importante nas negociações, eis que o Embaixador Tovar Nunes, representando a região das Américas, foi um dos seis vice-presidentes do INB, compondo o Bureau que coordenou as negociações. As formas de participação social na elaboração da posição brasileira foram criticadas pela sociedade civil, entre outras razões pela inclusão do setor privado nos espaços de diálogo com movimentos sociais.

            Na sessão informativa recentemente convocada pelo Ministério da Saúde, os negociadores brasileiros apresentaram uma perspectiva positiva do avanço das negociações do acordo. Expressando otimismo quanto à possibilidade do instrumento ser apreciado na 77ª AMS, os representantes do governo brasileiro avaliaram que não seria necessária a extensão de prazo para o encerramento dos temas pendentes, apesar dos desafios que claramente se apresentavam.

            Na realidade, apesar da prorrogação da nona reunião do INB, além da inexistência de consenso sobre o acordo, também não se discutiu um projeto de resolução para a AMS, tampouco foi apresentado um plano para as próximas etapas de negociação. No momento em que concluímos esta nota, o documento que o INB apresentará à AMS ainda é desconhecido.

            Nossa avaliação sobre o adiamento da conclusão do acordo, sejam quais forem os termos desta prorrogação, é de que a ausência de consenso no prazo estipulado constitui um sinal preocupante de que a terrível experiência da covid-19 não foi capaz de inspirar a vontade política suficiente para que os países ricos, entre eles alguns que se apresentavam como líderes do acordo, fizessem concessões capazes de tornar, de fato, eficiente a resposta internacional às pandemias.

            Alertamos para os diversos riscos trazidos pelo adiamento da conclusão do acordo. Nesta breve nota, destacaremos quatro deles.

            O primeiro é a lentidão do processo, que se vê prejudicado pela diminuição da percepção de urgência e do interesse político em torno do novo instrumento. A memória da covid-19 vai ficando cada vez mais distante, obnubilada por outras agendas e prioridades dos Estados.

            O segundo é a proximidade de eleições com potencial impacto negativo sobre a diplomacia e o multilateralismo, como é o caso dos Estados Unidos. As pesquisas de opinião apontam a provável vitória de um candidato que, em 2020, quando Presidente dos Estados Unidos, deu início ao processo de retirada do país da OMS, o que só não se consubstanciou em razão da derrota eleitoral e da posse de um novo governo. Em razão destes dois primeiros riscos, o tempo parece correr contra a construção de consensos no âmbito da OMS.

            O terceiro risco diz respeito à mobilização das extremas direitas na produção de desinformação, que acompanhou todo o processo de negociação do acordo, na esteira da exploração ideológica e eleitoral que caracterizou a covid-19, com imensuráveis danos para a saúde pública. A distorção de elementos cruciais do processo negociador – como, por exemplo, as falsas alegações de que os países seriam destituídos de sua soberania nacional na resposta às emergências – alimenta o crescimento da oposição ao acordo na arena política interna de diversos países.

            Neste sentido, o adiamento da conclusão do texto já está sendo apresentado por grupos extremistas como uma vitória. A defesa do acordo, por sua vez, é dificultada pela complexidade do processo negociador, com numerosos rascunhos e rodadas que não se fizeram acompanhar de mecanismos eficientes de comunicação. Até o momento sequer um nome adequado foi atribuído ao acordo para que ele pudesse ser defendido publicamente. A simultaneidade da negociação das emendas ao Regulamento Sanitário Internacional (RSI) contribuiu igualmente para esta confusão.

            Por outro lado, os mecanismos de participação social do INB foram inadequados, dando pouco espaço à contribuição de entidades e especialistas com histórico relevante de atuação no tema, principalmente do Sul Global, e deixando brechas para a captura ideológica das consultas públicas por movimentos extremistas.

            Por fim, os fatores que determinaram as disfunções da resposta internacional à covid-19 persistem. Caso uma nova pandemia seja declarada neste momento, as disfunções ocorridas tendem a repetir-se, na ausência de compromissos políticos fundamentais capazes de evitá-las. Entre outros exemplos, podemos citar as brutais assimetrias no acesso a vacinas e outros insumos essenciais à resposta às emergências, que foram marca indelével da covid-19.

            Seguiremos acompanhando os desdobramentos do tema durante a AMS, na expectativa de que, o mais breve possível, o necessário consenso seja construído.