GT Acordo

Os mais odiados da Romênia: um vislumbre sobre a situação da população Roma, de Laís Santos Gontzos

6 outubro 2021

Os mais odiados da Romênia: um vislumbre sobre a situação da população Roma, de Laís Santos Gontzos

Em 2020, tive a oportunidade de realizar um intercâmbio na Romênia, país do famoso conde Drácula e conhecido por ter uma grande população cigana. A cidade onde fiquei chama-se Cluj-Napoca e é o terceiro maior centro urbano da Romênia. 

Após alguns dias conhecendo Cluj, uma amiga, mestranda de mobilidade internacional, chamou a minha atenção para uma característica da cidade: não haviam moradores de rua, nem pessoas pedindo dinheiro, nenhum sinal de “pobreza” na cidade. E, segundo o professor dela, a cidade era assim porque em 2010 as autoridades de Cluj-Napoca expulsaram os “indesejados” para uma cidade próxima, Pata Rât. A maioria dos “indesejados” a que me refiro são do “povo Roma/Romani”, conhecidos pela maioria de nós como ciganos. Os Roma são 2,5 milhões em uma população de 19 milhões na Romênia e aproximadamente 81% deles vivem em risco de pobreza, de acordo com o Banco Mundial em 2011.

A  matéria publicada pelo European Environmental Bureau (EEB) diz que no inverno de 2010, após uma decisão municipal, 76 famílias Roma (totalizando 350 pessoas) que tinham estado no centro da cidade de Cluj-Napoca foram despejadas de suas casas e realocadas junto a um lixão em Pata Rât.  De acordo com a Anistia Internacional, para 36 das 76 famílias despejadas não foram oferecidas acomodações alternativas e elas foram literalmente deixadas na rua. As 40 restantes receberam um quarto por família e cada uma delas teve que dividir um banheiro comum com outras três.

De acordo com o The Guardian, em 2019, aproximadamente 1.800 pessoas (a maioria Romani) viviam ao redor do lixão. Um população já vunerabilizada pela constante discriminação e que sofre também pela condição precária de moradia, pela falta de saneamento básico, falta de acesso a água potável e pela continua exposição à doenças provindas dos materias despejados.

Imagem 1: moradias construídas no lixão de Pata Rât.   Imagem 2: criança Romani ajudando à margem do lixão.

Acontecimentos como esse não são exclusividade de Cluj-Napoca, o documentário curta-metragem feito pela VICE em 2014, intitulado “A luta pela sobrevivência do povo Roma: os mais odiados na Europa”, mostra o despejo de famílias Roma na cidade de Eforie na Romênia. Em 2013, 22 famílias Roma foram despejadas de suas casas onde viviam há cerca de 40 anos e, de acordo com o European Roma Rights Centre (ERRC), a ação foi realizada por cerca de 80 policiais acompanhados por trabalhadores com escavadeiras e supervisionados pelo Vice-Prefeito de Eforie. Mais de 100 pessoas ficaram desabrigadas quando suas casas foram destruídas e não receberam alternativa de moradia adequada. 

O documentário mostra que esses Romani despejados tiveram que viver ao ar livre em abrigos temporários até que, a pedido do prefeito, alguns puderam se hospedar em um prédio escolar abandonado. No entanto, a condição da escola era deveras precária, não havia eletricidade nem janelas e os moradores relataram que o teto estava desmoronando. Outra parte da população foi obrigada a morar em containers de remessa, cujo espaço era muito pequeno para famílias e não havia acesso a condições mínimas de existência como acesso a água potável, saneamento básico e eletricidade. 

 Imagem 3: containers de remessa usados pelos Romani como moradia em Eforie.
Imagem 3: containers de remessa usados pelos Romani como moradia em Eforie.

A justificativa do prefeito de Eforie, Ion Ovidiu Brailoiu, para que essa população fosse despejada é de que elas ocuparam ilegalmente terras da cidade. No entanto, durante o documentário, os Romani mostram que possuem documentos produzidos pelo Estado romeno que comprovam que eles estavam vivendo legalmente em suas casas. O prefeito afirma que esses documentos são falsos e contraditoriamente pede que o povo Roma vá morar no endereço que consta em seu cartão de identidade, mas diz que esse cartão não comprova sua residência no local. 

De acordo com o portal de notícias Romea, em 2016 as autoridades locais tentaram despejar os Romani de suas “casas” container, mas foram barrados por um limiar do European Roma Rights Centre.

Ser considerado “cigano” é o pior estigma social na Romênia, segundo o ERRC. Declarações como as abaixo são comuns: 

Nossos ciganos são estúpidos. Eles poderiam pelo menos serem astutos, mas não são. São apenas primitivos e conseguem irritar toda a sociedade que já os vigia de perto […] Correm o país e a Europa descalços, pegajosos e sujos, com roupas que mais lhe dão nojo do que pena deles [..] Implorar, solicitar e ser desorganizado nunca lhes trará vantagens.
(VOICU,  2002 apud EUROPEAN ROMA RIGHTS CENTRE, 2003)

Madalin Voicu, autor da fala acima, é um político Romani e foi um dos dois representantes Roma no parlamento romeno em 2003. A declaração foi recebida em êxtase pela mídia romena e foi citada nos principais jornais como a fala política da semana.  

Parece contraditório que um membro da comunidade Roma faça uma declaração dessa, mas segundo o ERRC, indivíduos do grupo Roma que ascendem socialmente esforçam-se ao máximo para se distanciarem dos Romani comuns. O European Roma Rights Centre a afirma que esse tipo de comportamento é resultado de séculos de escravidão do povo Roma, “onde valor de um homem Romani era frequentemente considerado inferior ao de uma vaca”.

A situação do povo Roma em Pata Rât e Eforie são exemplos das condições degradantes em que vivem milhares de Romani. Na Romênia são vários os casos de Romani despejados e dos que vivem marginalizados em cidades devido a falta de políticas públicas inclusivas de um Governo complacente ao racismo sofrido por essa população. De acordo com o The Guardian, em muitas partes da Europa os Roma estão confinados em guetos e sujeitos a discriminação generalizada. 

Por fim, é válido ressaltar que escrevi esse texto sem a pretensão de falar como especialista da história do povo Roma e da Romênia, mas sim com o intuito de despertar o mesmo incômodo e revolta que senti enquanto lia e pesquisava sobre a situação difamante do povo Roma na Europa, principalmente na Romênia. Um incômodo que aumentou muito durante as aulas de Saúde Global porque me fez perceber que a situação que a população Roma vive, além de ser condicionada por um racismo estrutural também é pautada em faltas de políticas públicas que garantam condições dignas de sobrevivência para essa população. As aulas também me fizeram pensar em como é necessário a presença e a discussão sobre populações vulnerabilizadas, principalmente os Roma, um povo que pouco ouvi falar durante a minha graduação em Relações Internacionais.

Notas:
1. Minha tradução. Original: The Struggle for Survival of the Roma People: Europe’s Most Hated
2. Minha tradução. Original: “Our gypsies are stupid. They could at least be crafty but they aren’t. They are just primitives and they manage to irritate the entire society which is already watching them closely […] They run through the country and Europe barefoot, slimy and dirty, wearing clothes which are more likely to disgust you than make you feel sorry for them […] Begging, soliciting and being disorganized will never bring them any advantages.”
 3. Minha tradução. Original: “[…]in which the value of a Romani man was often considered less than that of a cow.”
 4. Veja os casos em Bucareste, Baia Mare e Constanța.

—————-

Referências:

Imagem  1: 

http://someseanul.ro/wp-content/uploads/2017/04/locuinte-romi-tigani-Pata-Rat.jpg

Imagem 2: https://ep00.epimg.net/elpais/imagenes/2019/07/11/album/1562840867_548431_1562841216_album_normal.jpg

Imagem 3:

http://www.romea.cz/aaa/img.php?src=/img_upload/03ec66ac77713bab242255f6194ad3ff/bydleni-rumunsko.jpg&w=630

—-
DHNET. Declaração Mundial sobre a Sobrevivência, a Proteção e o Desenvolvimento da criança nos anos 90 Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/c_a/lex42.htm. Acesso em: 30 set. 2021.

UNHCR. Romania: Situation of Roma, including treatment by society and government authorities; state protection and support services available to Roma (2011-2015). Disponível em: https://www.refworld.org/docid/563c58104.html. Acesso em: 30 set. 2021.

ROMEA. Romanian town must finally compensate some members of a forcibly evicted Romani community. Disponível em: http://www.romea.cz/en/news/world/romanian-town-must-finally-compensate-some-members-of-a-forcibly-evicted-romani-community. Acesso em: 30 set. 2021.

GUARDIAN, The. No voice, no future? Roma ignored as Europe goes to polls. 2019. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2019/may/23/no-voice-no-future-roma-ignored-as-europe-goes-to-polls. Acesso em: 30 set. 2021.

VICE News, The Struggle for Survival of the Roma People: Europe’s Most Hated., 2014. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ALdlphTYdi4. Acesso em: 30 set. 2021.

European Roma Rights Centre. Being A “Gypsy”: The Worst Social Stigma In Romania. 2003. Disponível em: http://www.errc.org/roma-rights-journal/being-a-gypsy-the-worst-social-stigma-in-romania. Acesso em: 30 set. 2021.

European Environmental Bureau. Treated Like Trash: How Roma In Romania Are Forced To Live By City Dumps. 2019. Disponível em: https://meta.eeb.org/2019/08/29/treated-like-trash-how-roma-in-romania-are-forced-to-live-by-city-dumps/. Acesso em: 30 set. 2021.

Anistia Internacional. Romania: The Roma who were evicted to live by a landfill site. 2012. Disponível em: https://www.amnesty.org/en/latest/news/2012/12/romania-roma-who-were-evicted-live-landfill-site/. Acesso em: 20 jul. 2021.

Thomson Reuters Foundation. Roma fear there is no place for them as Romania’s cities modernize. 2017. Disponível em: https://www.reuters.com/article/us-romania-roma-property-feature-idUSKBN16T043. Acesso em: 30 set. 2021.

El País. A lenta ‘favelização’ da Romênia. 2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/07/11/album/1562840867_548431.html#foto_gal_1. Acesso em: 30 set. 2021.

5 1 vote
Article Rating
Subscribe
Notify of
1 Comentário
Oldest
Newest Most Voted
Inline Feedbacks
View all comments
bianca de Oliveira
2 anos atrás

Uma análise comparativa entre os diversos preconceitos étnicos e raciais revelam que comumente o ódio aos grupos vulneráveis é expresso na forma de associação com sujeira. O livro “Maus: a história de um sobrevivente”, por meio de relatos em forma de desenho em quadrinho, mostra como os judeus foram relacionados a imagem de ratos na Alemanha nazista, de maneira a corroborar a nefasta ideologia de limpeza étnica e eugenia. Infelizmente, apesar dos enormes avanços em direitos e em movimentos sociais, tais ideias ainda resistem em alguns aparatos estatais, como é o caso da situação do povo Roma, relatado no artigo e muito visível na fala de Madalin Voicu. Muitas vezes, situações de exclusão como a dos Roma são denominadas como marginalização de grupos sociais. Eu defendo, contudo, que esse termo não seja apropriado, pois omite o agente causador da exclusão. Ou seja, o uso do termo marginalizado permite o entendimento de uma exclusão automática e espontânea desses grupos sociais, ocultando a responsabilidade de atores. A situação do povo Romani é um dos inúmeros exemplos que denunciam a ausência do carácter ocasional na exclusão de minorias; ao contrário, as exclusões são intencionalmente pensadas e executadas pelos governos que promulgam ideias racistas e misóginas. Não só pela omissão, mas também pela ação, esses agentes estatais jogam minorias à margem da sociedade, expondo-os a situações insalubres, de forma a adoecer essa parcela da população.