Em setembro de 2000, na Cúpula do Milênio, 191 países declararam seu compromisso com a promoção de um desenvolvimento humano e digno para suas populações. Entusiasmados por essa iniciativa, diversos atores clamaram pela sua expansão. Assim, inspirada pela Cúpula do Milênio e pelo conceito de desenvolvimento sustentável criado na ECO-92 e na Rio+20, surgiu a Agenda 2030, aprovada na Assembleia Geral da ONU em 2015.
E qual o papel da saúde no desenvolvimento? Há, por parte dos países, a compreensão de que a saúde é constitutiva do desenvolvimento, uma vez que populações saudáveis são essenciais para o crescimento econômico, e o reconhecimento de que um grande contingente populacional (especialmente em países em desenvolvimento) se encontra em situações moralmente inaceitáveis de saúde (BUSS et al., 2014, p. 2557). Nesse sentido, os ODS representam a renovação do compromisso dos países com essas questões. A construção do ODS 3, específico da saúde, trouxe inovações para a discussão, além de ser marcada por embates teóricos importantes.
O primeiro ponto a ser destacado é que o ODS 3: “Saúde e Bem-Estar” é um objetivo muito mais amplo e ambicioso que os ODM referentes à saúde. Os ODM referentes à saúde eram específicos e setoriais, o que favoreceu uma visão fragmentada do seu atingimento. Era extremamente desafiador para os países formular estratégias únicas que atingissem os ODM, ainda mais estratégias multissetoriais que poderiam ser sustentadas a longo prazo. Tendo isso em mente, foi proposto que o novo objetivo de saúde fosse maior, incluindo a “agenda inconclusa” dos ODM, mas também buscando incluir ações voltadas para os determinantes sociais e ambientais da saúde.
A principal estratégia da Agenda 2030 para cumprir essa promessa foi, além da criação de um objetivo amplo para a saúde, a divisão em metas. Entretanto, ao se analisar somente o ODS 3 e suas metas (consultar tabela), é possível notar que todas ainda são exclusivamente setoriais e não abordam os determinantes sociais e ambientais da saúde. Assim, outra aposta da Agenda 2030 foi a definição de objetivos que se relacionam. Como colocado por Buss et al. (2014, p. 2563): “Fica muito claro, ainda, que todos os ODS são, de alguma forma, ‘determinantes sociais da saúde’ “. A ideia é que todos os 17 objetivos são igualmente relevantes, e devem ser atingidos. Caso essa missão de fato seja cumprida, todos os determinantes sociais e ambientais da saúde seriam impactados. Nesse sentido, a Agenda 2030 consegue sugerir não só políticas “de saúde”, mas também incorpora indiretamente a estratégia da “saúde em todas as políticas”.
Além da questão estratégica, um embate foi travado a respeito do conteúdo do objetivo referente à saúde. Durante o processo de formulação da Agenda 2030, duas visões podem ser identificadas: de um lado existia a já mencionada da defesa de um objetivo mais amplo; de outro lado existia a defesa – por parte principalmente da OMS – de que o objetivo fosse a cobertura universal de saúde, um objetivo claramente setorial. (BUSS et al., 2014, p. 2561). Muitos consideram que esse posicionamento contraria a reputação da OMS, tendo em vista que privilegia somente o atendimento básico e individual, deixando de lado questões mais complexas que afetam o “bem-estar físico, mental e social” da pessoa, definição de saúde proposta pela OMS em 1948. Entretanto, como é inegável a importância de sistemas universais de saúde, esse aspecto acabou se consolidando na Agenda 2030 como uma meta-processo: a cobertura universal de saúde é uma meta a ser atingida, assim como é um meio de atingir as demais metas.
Embora a Agenda 2030 promova avanços interessantes para o campo da saúde, sobretudo em comparação aos ODM, não se trata de um conceito perfeito. Em primeiro lugar, com relação ao conteúdo do ODS 3, Buss et al. (2014) apontam duas falhas importantes. Não há, na defesa de sistemas universais de saúde, nenhuma menção a equidade, qualidade e integralidade desses sistemas, aspectos que sabemos serem essenciais na promoção do direito à saúde. Outra problemática do ODS 3 é o seu foco primordial na saúde individual, não havendo nenhuma menção à saúde coletiva ou pública. Os autores apontam a ausência de temas como a vigilância sanitária e epidemiológica; saúde ambiental; planejamento e gestão em saúde; educação em saúde, entre outros.
Além disso, existem dúvidas com relação ao atingimento das metas. Apesar de incentivar estratégias multissetoriais e propor inovações de governança, o ODS 3 depende de comprometimentos políticos para organizar ações dentro dos sistemas de saúde nacionais. Por isso, muitos criticam a iniciativa como idealista ou demasiadamente ambiciosa, sobretudo para a área da saúde, que dependeria de todos os ODS.
Referências:
BUSS, Paulo Marchiori et al. Saúde na agenda de desenvolvimento pós-2015 das Nações Unidas. Cadernos de Saúde Pública, v. 30, p. 2555-2570, 2014.
KICKBUSCH, Ilona; BUSS, Paulo M. Saúde na agenda pós-2015: perspectivas a meio do caminho. Cadernos de Saúde Pública, v. 30, p. 2035-2037, 2014.
O futuro que queremos. Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável. Rio de Janeiro, Brasil, 2012. Disponível em: https://sc.movimentoods.org.br/wp-content/uploads/2019/10/O-Futuro-que-queremos-RIO20.pdf. Acesso em: 6 de novembro de 2021.
Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. ODM Brasil, 2015. Disponível em: http://www.odmbrasil.gov.br/os-objetivos-de-desenvolvimento-do-milenio. Acesso em: 4 de novembro de 2021.
Transforming our world: the 2030 Agenda for Sustainable Development. Department of Economic and Social Affairs: Sustainable Development, 2015. Disponível em: https://sdgs.un.org/2030agenda. Acesso em: 4 de novembro de 2021.