Entre os estados membros da ONU, apenas 21 contam com mais de 70% de suas populações plenamente vacinadas contra o COVID-19 (PNUD, 2021a). Estes países têm um perfil bastante homogêneo: 18 estão classificados como tendo IDH muito alto, 16 tem PIB per capita acima dos US$25.000, 14 são membros da OCDE e 7 da União Europeia (PNUD, 2021b). Dois países nesta lista, entretanto, não se enquadram em nenhum dos critérios citados. Camboja e Butão, ambos países de IDH médio, PIB per capita baixo e limitada urbanização (PNUD, 2021a; PNUD, 2021b; Banco Mundial, 2021), encontraram enorme sucesso em seus programas vacinais, contando, respectivamente, com 78,03% e 72,56% de suas populações totalmente vacinadas (PNUD, 2021a). Sétimo e décimo-sexto membros da ONU com maior incidência vacinal, o próximo país de IDH médio em cobertura é somente o Marrocos, em distante 50º (PNUD, 2021a). É interessante, portanto, estudar como esses estados encontraram tamanho sucesso em seus programas vacinais, mesmo enfrentando inúmeros desafios.
Crucialmente, muito antes da aplicação de vacinas, os governos do Camboja e do Butão foram duros frente à pandemia. As medidas adotadas entre os dois países incluíram o fechamento de fronteiras; a suspensão certos serviços público e privados; quarentenas mandatórias para doentes e recém-chegados do exterior; lockdowns em regiões com alta nos casos; ampla testagem; e uma constante comunicação entre governo e cidadãos, a fim de reforçar a necessidade de certos cuidados e garantir acesso à informação segura e de qualidade (Drexler, 2021; Dorji e Prison, 2021; Dorjie e Tamang, 2021; Tatum, 2021; Chhengpor, 2021; Strangio, 2021; Nit et al., 2021). O controle da transmissão do vírus foi colocado no topo das prioridades políticas, alcançando-se resultados bastante positivos em termos numéricos e passando-se uma mensagem clara às populações.
Essa postura resoluta se repetiu em dois momentos cruciais: na aquisição das vacinas e nos programas para aplica-las. O Primeiro Ministro cambojano, Hun Sen, escolheu cedo as vacinas chinesas Sinopharm e Sinovac, o que se mostrou acertado quando a China foi capaz de entregar rapidamente as 28,3 milhões de doses encomendadas, além de mais 6,3 milhões em doações bilaterais (Bridge, 2021; Hutt, 2021). Apesar de um orçamento limitado, o governo não hesitou em investir US$170 milhões nas encomendas chinesas, entrando cedo em uma fila que logo se congestionou (Hutt, 2021).
Com mais de 2,7 milhões em doações chinesas ainda a caminho, fica clara a relevância da política externa para a resolução de problemas domésticos. O maior receptor de doações vacinais chinesas, o Camboja passou os últimos anos investindo na relação com Beijing, tornando-se um de seus aliados regionais mais importantes – as doações vêm, naturalmente, como fruto dessa relação (Bridge, 2021; Hutt, 2021; Stragio, 2021). Em grau ainda mais intenso, quase todas as doses aplicadas no Butão são originárias de doações: são mais de 1.450.000 doses advindas da Índia, Dinamarca, China, Croácia, Bulgária e Estados Unidos – o último por meio da COVAX (Dorji e Tamang, 2021; UNICEF, 2021a; UNICEF, 2021c). Sem bons laços internacionais, a possibilidade de receber doações fica profundamente limitada.
Além disso, os dois governos distribuíram as doses recebidas de maneira efetiva. O Butão investiu em uma campanha com coordenação em multiníveis e respeitando os costumes budistas, hegemônicos no país. Teleconferências entre o governo central e líderes locais foram realizadas nos meses anteriores à data de vacinação, permitindo não só angariar dados preciosos para melhor coordenar a distribuição e aplicação de doses, mas também integrando-os plenamente ao planejamento, junto a oficiais de saúde distritais e profissionais de saúde das próprias comunidades, o que facilitou a aceitação da vacina entre as populações (Dorji e Tamang, 2021; Schiffling e Phelan, 2021).
No Camboja, o governo investiu em uma política dura e controversa, gerando inclusive críticas por parte da advocacy internacional. Diversas autoridades instituíram a necessidade de comprovação vacinal para garantir o acesso a certos espaços, serviços e mesmo empregos públicos, incluindo entrada a instituições de ensino e a possibilidade de criação de cartões seguridade social (Human Rights Watch, 2021; Smith e Mofokeng, 2021). As discussões também seguem a mobilização das forças armadas para imunizações mandatórias de indivíduos em áreas com maior risco de disseminação (Human Rights Watch, 2021; Chhengpor, 2021; Kimmarita, 2021).
O fator mais importante, todavia, é a aceitação social da vacina. Mesmo com doses garantidas, excelente planejamento ou um punho duro, nada é capaz de substituir uma população simpática a vacina. Ambos os governos passaram as últimas décadas perseguindo precisamente o aumento da aceitação e cobertura vacinais entre a população, simultaneamente preparando seus sistemas de saúde para aplicar essa grande dose de vacinas (Hutt, 2021; Dorji e Tamang). Não cabe dúvidas, portanto: a cobertura vacinal não deve ser entendida como atividade pontual, uma resposta pandêmica, mas sim preocupação constante por parte dos governos nacionais, de forma a construir uma população e um sistema prontos para responder suavemente em momentos de crise.
BIBLIOGRAFIA
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