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Vaccine Hoarding e o esvaziamento do COVAX, de Vitor Hugo Almeida Balbachevsky

3 setembro 2021

Vaccine Hoarding e o esvaziamento do COVAX, de Vitor Hugo Almeida Balbachevsky

Em abril de 2020, um mês após a paralização da vida pré-pandêmica iniciada em 13 de março no Brasil, a Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou o Access to Covid-19 Tools (ACT) Accelerator, um programa que assistiria países a lidar com a recém surgida pandemia. Um desses programas é o COVAX Facility, uma parceria da OMS, Gavi e Coalizão para Inovações em Preparação para Epidemias (CEPI), que distribuiria vacinas para países sem condições de comprá-las ou as venderia a preços simbólicos para aqueles com pequenas reservas de dinheiro. A ideia era tudo que os institucionalistas das RI teorizavam sobre a atuação de uma OI numa situação de emergência: a OMS tomando a frente na solução da pandemia, distribuindo bens públicos globais de forma equitativa.

A realidade que se desenhou no correr de 2020, contudo, era muito diferente da visão do COVAX.

Em julho, os EUA anunciaram que firmaram um contrato com a Pfizer e a BioNTech garantindo todas as doses de sua vacina ainda em fase de testes que seriam produzidas pelas duas empresas no ano de 2020. Ademais, anunciaram que a exportação de qualquer vacina contra a covid-19 de produção nacional estaria proibida. É importante ressaltar que a Pfizer não é a única fabricante estadunidense com potenciais vacinas, esse decreto também afetava as empresas Janssen, Novavax, Moderna, e as doses da Astrazeneca fabricadas por lá. Outros países do Norte global também seguiram a deixa estadunidense, Reino Unido, Canadá, UE, dentre outros, também firmaram contratos com diferentes farmacêuticas garantindo doses de vacinas ainda nas fases de teste. O Canadá ao final de sua rodada monopolizadora já havia garantido um total de 10 (dez) doses para cada habitante, por exemplo, mesmo sabendo que as vacinas com o maior número de doses necessárias para proteção total requerem apenas duas aplicações. A prática tão comum e amplamente difundida entre esses poucos países ganhou o nome vaccine hoarding.

A bela proposta do COVAX encontra então a fria realidade de 2020, como tão bem posto pelas pesquisadoras Alice Bayingna et al., a solidariedade pregada pelo programa foi correspondida com o egoísmo típico dos países de alta renda – primeiro resolvo o meu problema, então eu penso se ajudarei os outros. Para além das doses indisponíveis ainda naquele ano em função dos diversos contratos firmados pelos vaccine hoarders, a iniciativa tinha um problema mais elementar: a falta de financiamento. Apesar de ter conseguido levantar uma quantia considerável em recursos, estima-se que o COVAX ainda necessite de 2,6 bilhões de dólares para que possa cumprir seu propósito. Essa escassez fez com que fosse criado um programa de doação individual para que cidadãos de todo o mundo também pudessem doar dinheiro ao fundo.

Com a virada do ano e a distribuição bem sucedida de vacinas nos países ricos, as doses extras começam a sobrar (como previsto) gerando esperanças de que elas seriam cedidas ou ao menos revendidas ao COVAX, porém mais uma vez as expectativas da OMS foram frustradas. A decisão tomada pelos Estados Unidos, por exemplo, foi a de escolher qual país receberia suas doses remanescentes e quantas lhe seriam dadas. Essa distribuição que antes seria equitativa se feita através do COVAX se tornou política, baseada em afinidades diplomáticas ou outros interesses. A partir dessa prática é possível questionar o que motiva essa ajuda: Por que escolher qual país receberá a vacina? Essa atitude pode trazer algum tipo de ganho aos EUA? Às custas de qual outro país o Brasil recebe 3 milhões de doses doadas, por exemplo?

FONTES:

BAYINGANA AU, et al. What will we choose to learn from the COVID-19 pandemic? BMJ Global Health, 2021. Disponível em: <https://gh.bmj.com/content/bmjgh/6/8/e007005.full.pdf>

BBC. Covax, a coalizão de 165 países para garantir vacina contra coronavírus às nações mais pobres, 2020. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/geral-53984765>

THE ECONOMIST. Vaccine nationalism means that poor countries will be left behind, 2021. Disponível em: <https://www.economist.com/graphic-detail/2021/01/28/vaccine-nationalism-means-that-poor-countries-will-be-left-behind>

GAVI. COVAX explained. Disponível em: <https://www.gavi.org/vaccineswork/covax-explained>

ISTOÉ DINHEIRO. EUA fecham compra de todas as vacinas contra covid-19 da Pfizer e BioNTech em 2020, 2020. Disponível em: <https://www.istoedinheiro.com.br/eua-fecham-compra-de-todas-vacinas-contra-covid-19-da-pfizer-e-biontech-em-2020/>

METRÓPOLES. Canadá já garantiu 10 doses de vacina da Covid-19 de graça por habitante, 2020. Disponível em: <https://www.metropoles.com/mundo/saude-int/canada-ja-garantiu-10-doses-de-vacina-da-covid-19-de-graca-por-habitante>

NATURE. How COVID vaccines are being divvied up around the world, 2020. Disponível em: <https://www.nature.com/articles/d41586-020-03370-6>

OMS. The Access to Covid-19 Tools (ACT) Accelerator. Disponível em: <https://www.who.int/initiatives/act-accelerator>

PODER360. Brasil recebe doação de 3 milhões de doses da vacina da Janssen dos EUA, 2021. Disponível em: <https://www.poder360.com.br/coronavirus/brasil-recebe-doacao-de-3-milhoes-de-doses-da-vacina-da-janssen-dos-eua/>

VOX. Why Covax, the fund to vaccinate the world, is struggling, 2021. Disponível em: <https://www.vox.com/future-perfect/22440986/covax-challenges-covid-19-vaccines-global-inequity>

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Bianca Barreto
2 anos atrás

Excelente texto, Vitor!
Você trouxe dados extremamente relevantes nesse cenário pandêmico. Ao final da sua publicação, fiquei refletindo qual seria a nossa realidade caso o COVAX Facility tivesse obtido êxito. Triste pensar que a vida de muitos foi ceifada por questões diplomáticas. Você conseguiu elucidar com maestria que nunca estivemos no mesmo barco durante a COVID-19.

Patrick Eugster
2 anos atrás

Great article! I think your article sheds light on the ‘dark side’ of the vaccination success in the developed world. The developed countries currently have access to more vaccine doses than they could ever use and simultaneously there is a high percentage of the population who does not want to get vaccinated. At least certain developped countries are starting to share their expiring vaccine shots with less fortunate countries.
https://www.worldbank.org/en/news/podcast/2021/07/30/-absolutely-unacceptable-vaccination-rates-in-developing-countries-the-development-podcast