“Em Lisboa ‘os tiros em funeral anunciaram que o Libertador já não existia’. A 25 foi o seu cadáver autopsiado: ‘Raro era o órgão indispensável à vida que não apresentasse lesões […] O pulmão esquerdo denegrido, friável, sem aparência vesicular quase todo, apenas numa pequena porção da parte superior era permeável ao ar.’”
– Otávio Tarquínio de Souza sobre Dom Pedro I
Dom Pedro I faleceu em 24 de setembro de 1834, aos 36 anos, acometido pela tuberculose, cujo os efeitos em um de seus pulmões foram detalhadamente descritos no trecho acima. Ao longo do século XIX e no início do século XX outras ilustres figuras morreram do mesmo mal: O sambista Noel Rosa, o escritor José de Alencar e os poetas Álvares de Azevedo, Castro Alves e Augusto dos Anjos (Fundação Ataulpho de Paiva, 2021). No mais, a tuberculose parece um risco distante, perdido nos tempos de boemia insalubre, imóveis aglomerados, pouco arejados e inalcançáveis pelo Sol do Rio de Janeiro de 150 ou 200 anos atrás. Perdido também naquela época sombria das pessoas cujo sofrimento amoroso instigava a doença a atacar com mais força indivíduos já mal alimentados e descuidados de si (GONÇALVES, 2000). Todavia, essa é uma impressão que não se confirma ao se observar os mais de 70 mil casos de tuberculose e as mais de 4 mil mortes registradas anualmente no país (BRASIL, 2020).
O primeiro Imperador do Brasil, o renomado sambista e os grandes poetas da literatura nacional padeceram de um doença que não tinha cura e que até a década de 1920 fora totalmente negligenciada pelo Estado, que chegou até a vetar verbas para um plano de combate a tuberculose no início do século XX (GONÇALVES, 2000). Um cenário aparentemente distinto do encontrado hoje, no qual tratamentos eficazes e vacinas contra a tuberculose existem e são oferecidas gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Com isso em mente, como explicar o fato de que em diversas partes do país o número de contaminados tem aumentado e que o Brasil ainda é um dos países que mais registram casos de tuberculose no mundo?
Possíveis respostas surgem da sua taxonomia: a tuberculose é uma doença infectocontagiosa cuja transmissão é feita através da respiração e é causada por uma bactéria conhecida como bacilo de Koch, que se desenvolve em ambientes com pouca circulação de ar e baixa iluminação natural (FIOCRUZ, 2021). Em que pese a possibilidade de locais bem arejados e iluminados inibirem a bactéria, essa é uma realidade distante para pessoas que vivem em favelas, onde as habitações no geral são apertadas, úmidas e mal ventiladas, e para as pessoas em situação de rua, que possuem maior probabilidade de ficarem doentes e menor probabilidade de concluírem com sucesso o tratamento. Por isso, a tuberculose é também um problema social, “uma epidemia concentrada em determinadas populações extremamente vulneráveis”, nas palavras do então coordenador geral do Programa Nacional de Controle da Tuberculose (PNCT), Draurio Barreira (2015).
Contudo, a resposta dada ao problema da tuberculose no Brasil tem como foco quase absoluto a campanha de vacinação, o que se atesta pelo fato de que das oito medidas de proteção adotadas no PNCT, cinco envolvem a vacina BCG. Outras duas medidas envolvem o uso de medicação e uma última trata de biossegurança em estabelecimentos de saúde (BRASIL, 2004). Esse tipo de abordagem é caracterizada por João Biehl como “bala mágica”, onde se opta por entregar “tecnologias de saúde (geralmente novas drogas ou aparelhos) dirigidas a uma doença específica apesar da miríade de fatores societários, políticos e econômicos que influenciam a saúde” (2011, p.267). A influência dos demais fatores é tão relevante e esmagadora que acaba por afetar as próprias medidas governamentais, já que a cobertura vacinal tem registrado quedas, principalmente em áreas de maior carência socioeconômica (ARROYO et al, 2019), e que as unidades de saúde têm tido dificuldade em fazer com que os indivíduos em situação de maior vulnerabilidade socioeconômica sejam assistidos e cumpram todo o tratamento (FIOCRUZ, 2021).
Em vista do que foi exposto, é estarrecedor constatar a indiferença daqueles que gerenciam a Saúde Pública no país quanto a retroalimentação existente entre a tuberculose e a pobreza. Usando como escudo e espada somente respostas farmacêuticas, negligenciando os fatores socioeconômicos que multiplicam as chances de uma pessoa ser contaminada e abstendo-se de políticas públicas que levem em conta as especificidades e necessidades de cada comunidade ou grupo social, o Brasil tem permitido que as populações mais carentes sigam padecendo de uma doença que as classes sociais mais abastadas parecem nem saber que ainda existe.
Referências
ARROYO, Luiz Henrique, et al. Áreas com queda da cobertura vacinal para BCG, poliomielite e tríplice viral no Brasil (2006-2016): mapas da heterogeneidade regional. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 4, Jan. 2019. p.1-18. Disponível em: http://cadernos.ensp.fiocruz.br/csp/artigo/1042/areas-com-queda-da-cobertura-vacinal-para-bcg-poliomielite-e-triplice-viral-no-brasil-2006-2016-mapas-da-heterogeneidade-regional . acessos em 05 Set. 2021.
Biehl, João. Antropologia no campo da saúde global. Horizontes Antropológicos. 2011, v. 17, n. 35, p. 227-256. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-71832011000100009. Acesso em: 02 Set. 2021
BRASIL. Ministério da Saúde. Área Técnica de Pneumologia em Saúde. Programa Nacional de Controle da Tuberculose (2004). Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/ProgramaTB.pdf Acesso em: 01. Set 2021
______. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância e Saúde. Número Especial. Março de 2020. Disponível em: https://antigo.saude.gov.br/images/pdf/2020/marco/24/Boletim-tuberculose-2020-marcas–1-.pdf Acesso em: 01 Set. 2021
FUNDAÇÃO ATAULPHO DE PAIVA, Liga Brasileira Contra a Tuberculose. Personalidades históricas mortas pela tuberculose. 2021. (blog). Disponível em: https://www.fundacaoataulphodepaiva.com.br/blog/personalidades-historicas-mortas-pela-tuberculose/. Acesso em: 01 Set. 2021.
FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. Tuberculose. 2021 (blog). Disponível em: https://portal.fiocruz.br/taxonomia-geral-doencas-relacionadas/tubercuolse. Acesso em 01. Set. 2021
GONÇALVES, Helena. Tuberculose ao longo dos tempos. História, Ciências, Saúde-Manguinhos. 2000, v. 7, n. 2. p. 305-327. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0104-59702000000300004>. Acesso em: 01 Set. 2021
HÁ uma epidemia concentrada de tuberculose no Brasil. El País, Rio de Janeiro, ano. 12 set. 2015. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/03/politica/1441251452_562835.html. Acesso em: 1 Set. 2021.
SOUSA, Otávio Tarquínio de. “A vida de Dom Pedro I” (tomo 3º). In: História dos Fundadores do Império (Volume II). Senado Federal, Conselho Editorial, 2015. p. 1035. Acesso em 01.Set.2021. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/528942
Parabéns pelo texto, Drielly! Acredito que você trouxe pontos muito importantes para o debate. Pensar fatores socioeconômicos é de fato pensar Saúde Pública e aqui é interessante trazer o conceito dos Determinantes Sociais da Saúde (DSS), o qual, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), trata sobre “as condições sociais em que as pessoas vivem e trabalham” (BUSS; PELEGRINO, 2007). Assim, é essencial que no momento de formulação de políticas públicas de saúde se considere estes determinantes e se construa um enfoque de direitos humanos, capaz de abranger as especificidades de cada grupo social e alcançar uma resposta efetiva à doença.
Bom post, que parte de uma reminiscência histórica para chegar a uma abordagem contemporânea de uma doença negligenciada. Creio que ficaria mais completo com uma referência ao ambiente de trabalho, pois a questão vai além da moradia em comunidades, referidas no post como favelas. É a razão pela qual certas categorias profissionais e também trabalhadores migrantes são particularmente atingidos pela doença. Há também estudos importantes sobre o estigma das pessoas atingidas, como, por exemplo, Andrade e Silva et. al. O sentido de vivenciar a tuberculose: um estudo sobre representações sociais das pessoas em tratamentohttps://www.scielosp.org/article/physis/2016.v26n4/1233-1247/ De todo modo, ótimo que tenhas tratado um tema negligenciado em nossa agenda!