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Solidariedade e Estrangulamento: o xadrez geopolítico da Covid-19 na Venezuela, de André S Souto

17 novembro 2021

Solidariedade e Estrangulamento: o xadrez geopolítico da Covid-19 na Venezuela, de André S Souto

A crise multimodal venezuelana é um assunto sensível e divisivo. As implicações político-ideológicas por trás da defesa ou crítica, e as diversas formas como ambas posições podem ser postas, são consequência de feridas sociopolíticas ainda abertas e vivas na América Latina, e por isso é um tema que deve ser tratado com cuidado. É justamente por esta importância política pivotal para a região que as características da gestão pandêmica na Venezuela devem ser observadas em sua complexidade, como campo de batalha geopolítico, para assim entender o contraste estrutural de sua conjuntura com a de vizinhos que buscaram abraçar o neoliberalismo epidemiológico como resposta[1]. Caixões não velados foram o resultado em ambos lados, mas é importante que se distingua a morte como projeto da inabilidade de resposta central em um país alvo de intensa disputa geopolítica.

Claro que aspectos internos da política venezuelana não podem ser ignorados para se chegar à presente crise que abrange, entre outros, o sistema de saúde pública do país. A efetiva falha dos planos econômicos de se diversificar a economia impediu que o país se livrasse de sua doença holandesa na economia, o tornando extremamente dependente do mercado petrolífero, o que dificultou o financiamento público dos programas sociais existentes, especialmente após o início da espiral econômica nacional em 2012/2013[2]. Mas não se pode falar do derretimento das importações venezuelanas e do crescimento exponencial da dívida pública sem falar das mais de 43 sanções unilaterais dos Estados Unidos sobre o governo venezuelano, e não se pode desconsiderar seu efeito daninho à saúde da Venezuela desde as primeiras sanções aplicadas em 2014[3].

Afinal de contas, entre 2017 e 2018 apenas, estima-se que o excesso de mortes causadas por danos gerados à saúde pelas sanções flutuou na casa dos 40 mil casos e outras 300 mil estavam sob risco por falta de acesso a remédios e tratamentos[4]. Dados estes levantados antes do endurecimento de sanções aplicadas por Donald Trump em 2019, permitindo o comércio com o governo venezuelano (inclusive de alimentos e remédios) apenas mediante autorização do Office of Foreign Assets Control (OFAC).[5] Assim, a tentativa de mudança de regime forçada se lastreia não somente na geração de déficit econômico que mina o financiamento dos serviços públicos, como em ativo impedimento de comercialização de bens de primeira necessidade, e se manteve de pé durante o correr da pandemia. Os suplícios internacionais para o levantamento parcial das sanções unilateralmente aplicadas pelos Estados Unidos sobre a Venezuela levantaram, inclusive, a tese de que sua manutenção se trata de possível violação dos direitos humanos (em colisão com decisões da Corte Internacional de Justiça em favor de efetivas isenções humanitárias em regimes de sanções[6]) bem como de violação direta dos artigos 19 e 20 da Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA)[7].

Assim, não é de se espantar que tais ações tenham contribuído para a incapacidade de uma resposta centralizada e organizada do Estado venezuelano contra a Covid-19. O alívio do fardo sanitário vem de forças tarefas solidárias comunitárias e instituições de saúde agindo de forma descentralizada em suas comunidades. Mas também de articulações com alianças internacionais com outros países considerados párias do sistema internacional, através do comércio petrolífero, auxílios e comércio de insumos para levantamento de fundos e bens essenciais para o combate da pandemia e vacinação. O país continua o suprimento de petróleo para Cuba em troca do envio de médicos cubanos (cerca de 1250 profissionais em 2020)[8] para atuação em áreas de concentração de casos. A participação venezuelana nos estudos clínicos para o desenvolvimento da vacina Sputnik-V a rendeu a entrega de lotes do imunizante por parte da Rússia[9], e insumos e mais vacinas tem sido supridos pelo comércio chinês[10].

De certo que a promessa de Maduro de que 70% da população estaria imunizada até agosto não se cumpriu. A Venezuela administrou, até a altura, o equivalente necessário para imunizar 40% de sua população[11], mas, com cerca de 5 mil mortes relacionadas à pandemia, a existência de uma promessa de vacinação e esforços legítimos voltados para a aquisição de imunizantes e buscar alívio dos males agravados pela exclusão unilateral, mostram que respostas insatisfatórias do país à pandemia se dão mais pelo estrangulamento pelo qual passa, e posição material delicada na qual se encontra, do que pela adoção da disseminação como política de Estado.


[1] VENTURA, Deisy de Freitas Lima; BUENO, Flávia Thedim Costa. De líder a paria de la salud global: Brasil como laboratorio del “neoliberalismo epidemiológico” ante la Covid-19. Foro Internacional, 2021

[2] LUBBOCK, Rowan. Imperialism and the geopolitics of covid-19 in Venezuela. Textos e Debates, p. 153-176, jan./jun. 2020.

[3] ZAKRISON, Tanya L.; MUNTANER, Carles. US sanctions in Venezuela: help, hindrance, or violation of human rights?. The Lancet, Nova Iorque, p. 2586-2587, 13 jun. 2019.

[4] WEISBROT, Mark; SACHS, Jeffrey. Economic Sanctions as Collective Punishment: The Case of Venezuela. Center for Economic and Policy Research, Washington, D.C., p. 1-27, Abril 2019.

[5] CRI, Congressional Research Service. Venezuela: Overview of U.S. Sanctions,22 jan. 2021.

[6] ACNUR, Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. Unilateral sanctions hurting civilians must be dropped, says UN expert,17 out. 2018.

[7] WEISBROT, Mark; SACHS, Jeffrey. 2019

[8] LUBBOCK, Rowan. 2020

[9] FRANCE PRESSE. Primeiro lote de 100.000 vacinas russas contra a Covid-19 chega à Venezuela. G1, 13 fev. 2021.

[10] REUTERS. Venezuela recebe 1,3 milhão de vacinas contra covid-19 da China. Exame, 24 maio 2021.

[11] REUTERS. Venezuela. InCOVID-19 Tracker. 2021.

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