Leia escutando essa música.
“Há uma única espécie responsável pela pandemia Covid-19: nós. Assim como com as crises climáticas e o declínio da biodiversidade, as pandemias recentes são uma consequência direta da atividade humana – particularmente de nosso sistema financeiro e econômico global baseado num paradigma limitado, que preza o crescimento econômico a qualquer custo.1”
O antropoceno é um conceito proposto pela geologia, que significa uma era geológica marcada pela interferência humana no planeta. Em outras palavras, quando dizemos que estamos vivendo o antropoceno, quer dizer que teríamos deixado para trás a era anterior, o holoceno, para adentrar uma era geológica nova – uma era na qual a humanidade interpreta um papel central de agente transformador das condições básicas que permitem a vida como conhecemos. Apesar de não ser um consenso na comunidade científica, as evidências para a afirmação de que de fato, estamos vivendo uma era geológica inteiramente nova, são muitas: a alteração na composição da atmosfera devido à emissão dos gases do efeito estufa, o derretimento das geleiras e o aumento no nível do mar, provocados pelo aquecimento global, a poluição das águas, o aumento da concentração de substâncias radioativas no planeta… A lista vai longe.
Sendo antropoceno ou não sendo, – longe de ser a questão – é fato que a atividade humana se expandiu consideravelmente nos últimos dois séculos, tanto em volume quanto em intensidade – e que essa expansão está afetando o nosso planeta. Nunca circulamos, produzimos e descartamos tanto e em tão pouco tempo. Dados do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da Organização das Nações Unidas (IPCC – ONU), publicados em agosto deste ano, mostram que podemos atingir o limite de 1,5º C de aquecimento global em relação aos níveis pré-industriais uma década antes do previsto em 20182, e o clima vem se alterando com os 1,1º C já atingidos, aumentando a frequência e a intensidade de secas, queimadas, chuvas e inundações, além de ondas de calor devastadoras.
Os cientistas já vem cantando essa bola há muito tempo – oficialmente, desde 1979, quando ocorreu a 1ª Conferência Mundial do Clima (WCC), em Genebra. Naquele momento, pesquisadores de mais de 50 nações se reuniram e observaram que era “urgentemente necessário, para as nações do mundo, prever e evitar mudanças potencialmente antrópicas no clima que possam ser adversas ao bem-estar da humanidade”. Desde então, uma série de conferências, tratados, acordos e protocolos ganharam terreno no sistema internacional, dando origem ao que nós internacionalistas costumamos chamar de “regime de mudanças climáticas”.
O mais célebre e recente instrumento desse regime é o Acordo de Paris, de 2015, que tem (ou devo dizer tinha?) como objetivo fortalecer a resposta global contra as mudanças climáticas, através do comprometimento dos países em reduzir as emissões de gases do efeito estufa, e de maneira mais específica, conter o aquecimento global médio menor do que 2ºC a mais do que no período pré industrial. Não preciso dizer que estamos falhando miseravelmente: não apenas estamos aumentando nossas emissões, como estamos investindo cada vez mais na indústria que mantém a roda da queima de combustíveis fósseis girando3.
E o que isso tem a ver com a pandemia?
Bom, absolutamente tudo. Me explico: para além do imenso rastro de morte e o chacoalhão nas economias globais, a pandemia da covid-19 acontece num momento de inflexão para a história da humanidade. Essa não é uma ideia minha, quem diz isso é Luiz Marques, professor do departamento de história da Universidade Estadual de Campinas, a UNICAMP, e autor do livro Capitalismo e Colapso Ambiental:
“O que singulariza a atual pandemia é o fato de se somar a diversas crises sistêmicas que ameaçam a humanidade, e isso justamente no momento em que não é mais possível postergar decisões que afetarão crucialmente, e muito em breve, a habitabilidade do planeta. A ciência condiciona a possibilidade de estabilizar o aquecimento médio global dentro, ou não muito além, dos limites almejados pelo Acordo de Paris a um fato incontornável: as emissões de CO2 devem atingir seu pico em 2020 e começar a declinar fortemente em seguida”.
O que o professor Luiz Marques traz é um alerta que o IPCC nos fez em 2018: caso o pico das emissões ultrapasse 2020, vai ficar cada vez mais difícil – senão impossível – para a humanidade reverter os efeitos do aquecimento global e as suas consequências desastrosas para o clima do planeta e para a humanidade. Num mundo mais quente, alguns microorganismos podem ficar mais resistentes, além do nosso sistema imunológico enfraquecer. Num mundo mais quente, os chamados “vetores” das doenças epidemiológicas aumentam seu raio de ação e outros efeitos acontecem. Segundo Aaron Bernstein, diretor do Harvard University’s Center of Climate, Health and the Global Environment:
“À medida que o planeta se aquece (…) os animais deslocam-se para os polos fugindo do calor. Animais estão entrando em contato com animais com os quais eles normalmente não interagiriam, e isso cria uma oportunidade para patógenos encontrar outros hospedeiros. Muitas das causas primárias das mudanças climáticas também aumentam o risco de pandemias. O desmatamento, causado em geral pela agropecuária, é a causa maior da perda de habitat no mundo todo. E essa perda força os animais a migrarem e potencialmente a entrar em contato com outros animais ou pessoas e compartilhar seus germes. Grandes fazendas de gado também servem como uma fonte para a passagem de infecções de animais para pessoas”4.
Soma-se a isso nosso modelo de produção alimentício, baseado na monocultura e na agropecuária em escala industrial, que forçam o que apelidamos de “fronteira agrícola” cada vez mais para dentro dos biomas que ainda sobrevivem. No Brasil, isso vem acontecendo em relação à floresta amazônica e ao cerrado, e muitos pesquisadores e pensadores já alertam para o risco de uma nova pandemia surgir daqui5 – e tanto a epidemia do vírus zika quanto a variante brasileira do covid confirmaram esse sobressalto.
Mais precisamente em relação à pandemia da covid-19, longe de ser uma fatalidade, a ciência tem apontado para o caráter “antropogênico” da mesma e diversos artigos foram escritos6 mostrando o que o globalismo e o capitalismo tem a ver com ela, e como estávamos muito próximos de uma pandemia “estourar”, por assim dizer, há um longo tempo. De acordo com artigo escrito por Josef Settele, Sandra Díaz, Eduardo Brondizio e Peter Daszak:
“Desmatamento crescente, expansão descontrolada da agropecuária, cultivo e criação intensivos, mineração e aumento da infraestrutura, assim como a exploração de espécies silvestres criaram uma ‘tempestade perfeita’ para o salto de doenças da vida selvagem para as pessoas. (…) É provável que pandemias futuras ocorram mais frequentemente, propaguem-se mais rapidamente, tenham maior impacto econômico e matem mais pessoas, se não formos extremamente cuidadosos acerca dos impactos das escolhas que fazemos hoje”7.
Para além de alertas e previsões pessimistas, o que deve ficar claro aqui é que o aquecimento global é uma ameaça direta à saúde global, e que conforme o planeta se aquece, novos desafios sanitários – como pandemias – serão cada vez mais recorrentes. E é preciso enfatizar que quando falamos em “aquecimento global”, estamos falando da forma como temos produzido e habitado o planeta, pois as bases do nosso sistema econômico ainda residem na indústria termo-fóssil, e a lógica de acumulação de capital e bens de consumo nos impele ao esgotamento dos recursos planetários.
Infelizmente, apesar de todas as evidências e dos alertas da ciência, o paradigma que tem reinado no campo da saúde global é o que temos chamado de “securitização”, isto é, a abordagem das questões sanitárias globais em termos de segurança. Um ponto chave da securitização é o avanço da agenda da Segurança da Saúde Global (GHS, em inglês), definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como “as atividades requeridas (…) para minimizar os perigos de eventos pontuais que ameaçam a saúde das pessoas através de regiões geográficas a fronteiras internacionais”8.
Em seu artigo, a professora da faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, a USP, Deisy Ventura coloca que a definição da OMS para a Segurança da Saúde Global chega a mencionar os fatores ambientais, mas esses são vistos mais como causas das ameaças à saúde global do que possíveis instrumentos ou aspectos conceituais da mesma. A visão da OMS ilustra o paradigma do pensamento humano hegemônico atual: não estamos entendendo a dimensão da importância das questões ambientais ou climáticas em relação a todas as outras – ou se estamos entendendo, estamos fingindo que não é conosco.
Nesse mesmo artigo, as autoras advogam que não é possível falar em segurança na saúde global quando o meio ambiente e a sustentabilidade, em todos os seus âmbitos, não são levados em conta. E talvez não seja mais possível falar em nenhuma outra segurança daqui para frente se não levarmos em conta o meio ambiente. Enquanto não transformarmos o sistema disfuncional e destrutivo que vivemos e a forma pela qual as decisões são tomadas no mesmo, estaremos selando nosso pacto com o colapso ambiental – e consequentemente, nosso próprio colapso.
“Estamos vivendo um ponto de inflexão. Os próximos poucos anos serão os mais importantes da história da humanidade”. (Kathleen Dean Moore)
Notas:
1 Citação de Josef Settele, Sandra Díaz, Eduardo Brondizio e Peter Daszak, disponível no artigo do professor Luiz Marques, disponível nas referências.
2 Atingindo este limite, a humanidade corre o risco de ter o modelo de sociedades organizadas ameaçados, porque as alterações no clima não permitiriam.
3 As emissões globais de gás carbônico bateram mais um recorde em abril de 2020 (apesar da pandemia): atingiram 416,76 partes por milhão (ppm), 3,13 ppm acima de 2019, um dos maiores saltos desde o início de suas mensurações em 1958.
4 Citação disponível no artigo do professor Luiz Marques.
5 Um artigo muito interessante sobre o tema é o “O vírus está no prato”, publicado na revista Piauí, e também disponível nas referências.
6 Um desses artigos é o artigo do professor Luiz Marques, intitulado “A pandemia incide no ano mais importante da história da humanidade. Serão as próximas zoonoses gestadas no Brasil?”
7 Citação disponível no artigo do professor Luiz Marques.
8 Tradução minha.
Referências
CALIXTO, Bruno. O que é o antropoceno, a época em que os humanos tomam controle do planeta.
Disponível em: https://epoca.oglobo.globo.com/colunas-e-blogs/blog-do-planeta/noticia/2015/12/o-que-e-o-a
ntropoceno-epoca-em-que-os-humanos-tomam-controle-do-planeta.html. Acesso em: 16 nov. 2021.
CAPUCHINHO, Cristiane. Relatório da ONU mostra impacto humano irreversível no clima da Terra. Disponível em:
https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/meio-ambiente/audio/2021-08/relatorio-da-onu-mostra-impacto-humano-irreversivel-no-clima-da-terra. Acesso em: 16 nov. 2021.
LATOUR, Bruno. Bruno Latour: A crise sanitária incentiva a nos prepararmos para as mudanças climáticas. Disponível em: http://agbcampinas.com.br/site/2020/bruno-latour-a-crise-sanitaria-incentiva-a-nos-prepararmos-para-as-mudancas-climaticas/?fbclid=IwAR0zhkHTnTjrjzGMPQ96u3N7nDzebWWGxN xAwrcsAzEcWXrOCC8HU3vqlqM. Acesso em: 16 nov. 2021.
MARQUES, Luiz. A pandemia incide no ano mais importante da história da humanidade. Serão as próximas zoonoses gestadas no Brasil? Disponível em: https://www.unicamp.br/unicamp/noticias/2020/05/05/pandemia-incide-no-ano-mais-importante-da-historia-da-humanidade-serao-proximas. Acesso em: 16 nov. 2021.
MARQUES, Luiz. Do Acordo de Paris à COP 26. O que nos diz o dinheiro. Disponível em: https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/luiz-marques/do-acordo-de-paris-cop-26-o-que-nos-diz-o-dinheiro. Acesso em: 16 nov. 2021.
TONON, Rafael. O vírus está no prato. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-virus-esta-no-prato/. Acesso em: 16 nov. 2021.
VENTURA, Deisy de Freitas Lima; DI GIULIO, Gabriela Marques; RACHED, Daniela Hanna. Lessons from the Covid-19 pandemic: sustainability is an indispensable condition of Global Health Security. Debating Ideas: The Covid-19 Epoch: Interdisciplinary Research Towards A New Just And Sustainable Ethics. 2020. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1809-4422asoc20200108vu2020L3ID. Acesso em: 16 nov. 2021.
Incrível artigo, Ana! Achei as outras referências que você trouxe sobre o assunto muito instigantes e queria mencionar os artigos do epidemiologista David M. Morens, do National Institute of Allergy and Infectious Diseases (NIAID), que em suas produções ele também enfatiza que nosso modo de vida e produção está totalmente relacionado com o surgimento das doenças emergentes e reemergentes, inclusive no artigo “Pandemic COVID-19 joins history’s pandemic legion”) ele e seus colaboradores trazem um gráfico muito interessante que demonstra as grandes epidemias pelo mundo e como o tempo entre elas está cada vez menor. Enfim, parabéns pelo inédito e a experiência da leitura com a música tornou melhor ainda!
Reflexão muito interessante!
Os três últimos parágrafos do texto são alarmantes, pois indicam que a OMS, um dos principais agentes de mudanças na área da saúde global, não tem acompanhado a discussão sobre mudanças climáticas com a devida urgência. Espero que a pandemia de COVID-19 estabeleça uma nova agenda focada no meio ambiente.
Acredito que o debate sobre os determinantes sociais da saúde devem, necessariamente, abordar as condições climáticas como fatores essenciais para o bem-estar.
Que artigo interessante, Ana! Achei as referências incríveis, instigadoras e desesperadoras na mesma medida. Enquanto grande parte da população parece se dar por satisfeita com o avanço da vacinação e a redução do número de casos (o que me faz lembrar das primeiras aulas do curso e da chamada “bala mágica” de João Biehl), o professor Luiz Marques faz muito bem em lembrar que a Covid-19 representa uma entre as diversas crises sistêmicas que ameaçam a humanidade. Isso torna evidente a necessidade de uma atuação conjunta entre as áreas. Falar em Saúde Global é falar também sobre meio ambiente e aquecimento global, entre tantos outros temas.