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Saúde mental e neoliberalismo: uma relação impossível, de Alexandre Gomes Gonçalves de Oliveira

22 outubro 2021

Saúde mental e neoliberalismo: uma relação impossível, de Alexandre Gomes Gonçalves de Oliveira

Em 2020, a população dos Estados Unidos gastou 536 bilhões de dólares com medicamentos. A receita total do mercado farmacêutico, no mundo, ficou em 1,27 trilhões de dólares, sendo que 49% dessa receita dizia respeito aos Estados Unidos. Há 20 anos, a receita global era de 390 bilhões, quase 70% a menos. (Mikulic, 2021a; Mikulic, 2021b). Para os próximos anos, a expectativa é de crescimento, com uma taxa de crescimento anual composta (CAGR) de 8% para 2025 (The Business Research Company, 2021).

São muitos os dados que comprovam o tamanho da força e do poder da indústria farmacêutica atualmente. O que está por trás dessa cortina – ao mesmo tempo o que é um dos pilares dessa indústria – é o modo de produção neoliberal. Este modelo se favorece cada vez mais com a precariedade de sistemas de saúde pública em níveis nacional e global; se favorece tanto quanto mais fraca for a legislação ambiental e a proteção ecológica e da biodiversidade de um lugar; e também depende de uma desigualdade social em níveis nacional e global de grande amplitude. Esse modelo, que teve a origem de sua implementação e expansão ao redor do mundo ao mesmo tempo em que a disciplina de Saúde Global se constituía (Nunes, 2020), é a chave para o entendimento do mundo atual.

No que diz respeito ao estudo da saúde mental como ciência moderna, o neoliberalismo foi agente importantíssimo na construção de discursos e métodos científicos que tiveram a ambição de se colocar como modelo universal nas últimas décadas. Se o surgimento da psiquiatria no século XIX tinha como um dos objetivos centrais reinserir sujeitos à ordem, classificar e “biologizar” quaisquer “anormalidades”, o boom das “drogas mentais” e a explosão farmacológica da década de 1960 e 1970 trilhou caminhos similares. Para Vladimir Safatle (2021), “não por acaso, a ascensão do neoliberalismo nos anos 1970 é seguida por uma modificação brutal das formas de descrição e categorização do sofrimento psíquico. ”

Essa nova categorização foi acompanhada de modelos clínicos e de diagnósticos mentais amplamente descritos no DSM-III. Essa terceira edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, que já conta com 5 edições e é sempre elaborado pela American Psychiatric Association (APA), surgiu com o propósito de categorizar as doenças mentais de forma “neutra” e concentrando-se apenas nas descrições clínicas, deixando a investigação das suas origens num segundo plano (Safatle, 2021). Não é necessário muito esforço, porém, para saber que essa neutralidade científica e abordagem puramente biológica da saúde mental é uma ilusão utópica. O que vem ocorrendo, na verdade, é um grande movimento conjunto: a psiquiatria, os manuais diagnósticos e a indústria farmacológica, todos focando a atenção nos diagnósticos e na solução química mais efetiva, atuam de forma a servir da melhor maneira o modelo neoliberal.

Como elucidação do cenário psiquiátrico norte-americano, destaca-se aqui as posições de dois ex-presidentes da APA. Loren Mosher, ao renunciar ao cargo em 1998, deixou claro que observava uma tomada da psiquiatria pela indústria farmacológica: “The major reason for this action is my belief that I am actually resigning from the American Psychopharmacological Association. (…) At this point in history, in my view, psychiatry has been almost completely bought out by the drug companies”. No que diz respeito à abordagem “ultra biológica” da saúde mental, ele também critica esse cenário que é fatalmente acompanhado do modelo neoliberal: “No longer do we seek to understand whole persons in their social contexts rather we are there to realign our patients’ neurotransmitters. The problem is that it is very difficult to have a relationship with a neurotransmitter whatever its configuration”. Ainda, denuncia a utilização dos DSM, naquele caso, da quarta edição que estava em voga: “DSM IV is the fabrication upon which psychiatry seeks acceptance by medicine in general. Insiders know it is more a political than scientific document. (…) DSM IV has become a bible and a money making best seller”. Além de Mosher, Steven Sharfstein, que era presidente ainda no cargo em 2005, publicou um artigo refletindo sobre a presença da indústria farmacêutica no campo da psiquiatria. Para ele, “As we address these Big Pharma issues, we must examine the fact that as a profession, we have allowed the biopsychosocial model to become the bio-bio-bio model. ”

Enquanto o DSM é produzido diretamente pela instituição norte-americana APA, cabe a outro manual de diagnósticos se colocar como um guia no âmbito internacional. A Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (ICDem inglês e CID em português), produzida periodicamente pela própria OMS e que tem sua 11ª edição prevista para 2022, busca uma padronização universal das doenças através de uma aplicabilidade válida internacionalmente, classificando enfermidades e possibilitando melhor mapeamento das condições de saúde ao redor do mundo. Diferentemente do DSM, abrange todos os tipos de doenças, tendo uma seção específica para diagnósticos mentais.

Apesar das diferenças citadas entre a CID, produzido pela OMS, e o DSM, produzido pela APA, também encontramos pontos em comum. É muito interessante observar, no Relatório Global da OMS de 2001 que teve como título: Mental Health: New Understanding, New Hope, a importância dada para a economia dentro do contexto de atenção à saúde (mental) global. É colocado como um dos riscos e perigos de problemas relacionados à saúde mental o que é chamado de “economic burden”, ou seja, um fardo econômico com o qual a sociedade tem de lidar a partir da explosão recente de quadros de doenças como depressão e ansiedade ao redor do mundo. Para ilustrar esse argumento, citam além de uma possível queda de produtividade no trabalho, estudos que quantificam as “perdas” econômicas relacionadas a doenças psíquicas: “One such study (Rice et al. 1990) concluded that the aggregate yearly cost for the United States accounted for about 2.5% of gross national product. A few studies from Europe have estimated expenditure on mental disorders as a proportion of all health service costs: in the Netherlands, this was 23.2% (Meerding et al. 1998) and in the United Kingdom, for inpatient expenditure only, it was 22% (Patel & Knapp, 1998) ” (p. 26).

Chamar a atenção especificamente para as perdas econômicas e produtivas a partir de um aumento do número de casos de problemas de saúde de uma população é algo desumano, literalmente. É não levar em consideração as perdas individuais e sociais, além de mostrar que a máquina neoliberal está presente, atuante e exercendo seu poder também nesse contexto. Não devemos ir nem um pouco longe para observar os argumentos semelhantes também por trás dos movimentos negacionistas sobre a pandemia do COVID-19, que defenderam que a economia não poderia parar e que as perdas produtivas seriam muito danosas. Mais recentemente, ainda, vimos o modelo neoliberal não só se auto defendendo na medida em que procura sua sobrevivência, mas agindo ativamente como nos casos dos escândalos da Prevent Senior (CNN, 2021).  

Este caso recente de investigação de acordos entre o diretor da empresa e o governo federal é uma triste e exata previsão que serve de argumento para o que foi pesquisado há poucos meses e nomeado como “neoliberalismo epidemiológico” (Ventura & Bueno, 2021). Para Ventura e Bueno, a maneira pela qual o governo federal lidou com a pandemia não foi um caso de negligência, omissão, ou falta de preparo. Pelo contrário: foi uma estratégia governamental de promover o contágio massivo dentro do contexto do neoliberalismo, na medida em que se alinhava com a economia liberal e o populismo conservador aos quais sempre estiveram ligados os discursos do governo.

Assim, como João Nunes (2020) observa, a dinâmica neoliberal de exploração é revelada através da desigualdade, da precariedade e da privatização da saúde, que é intensificada ainda mais fortemente no cenário da pandemia. Apesar dele entender que a pandemia inflamou uma crise desse sistema, ao mesmo tempo, como vimos, temos todos os motivos para temer uma reorganização e reinvenção do modelo, permitindo a perpetuação de vários de seus mecanismos de sofrimento. Dessa forma, no caso específico da Saúde “mental” Global, que foi focalizada aqui, pudemos observar algumas das maneiras com as quais esse campo é, assim como a Saúde Global em geral, definitivamente levado pela forte correnteza do neoliberalismo. Essa correnteza é forte e conta com diversos obstáculos e pedras perigosas, intensificando as potenciais catástrofes e carregando todos no rio em direção ao abismo.

Referências:

– Matej Mikulic: U.S. pharmaceutical industry – statistics & facts, 2021. Disponível em: https://www.statista.com/topics/1719/pharmaceutical-industry/#dossierKeyfigures

– Matej Mikulic: Global pharmaceutical industry – statistics & facts, 2021. Disponível em:
https://www.statista.com/topics/1764/global-pharmaceutical-industry/#dossierKeyfigures

-The Business Research Company: Pharmaceuticals Global Market Report 2021: COVID-19 Impact and Recovery to 2030, 2021. Disponível em:https://www.researchandmarkets.com/reports/5292738/pharmaceuticals-global-market-report-2021-covid?utm_source=GNOM&utm_medium=PressRelease&utm_code=4gx334&utm_campaign=1518358+-+Global+Pharmaceuticals+Market+Report+2021%3a+Market+is+Expected+to+Grow+from+%241228.45+Billion+in+2020+to+%241250.24+Billion+in+2021

– João Nunes: A pandemia de COVID-19: securitização, crise neoliberal e a vulnerabilização global, Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/sng9pd8tLNdY3cQrDChhqPr/?lang=pt

– Safatle, Dunker, Silva Junior et al: Neoliberalismo Como Gestão do Sofrimento Psíquico. Editora Autêntica, 2021 (os dois trechos a que fiz referência são do primeiro capítulo, o qual é escrito apenas por Vladmir Safatle – não tenho certeza se devo citar com todos os autores ou se pode ser apenas ele)

– Mosher, R Loren: Open letter of resignation from the American Psychiatric Association, 1998. Disponível em: http://www.rosenfels.org/Mosher

– Sharfstein, S Steven: Big Pharma and American Psychiatry: The Good, the Bad, and the Ugly, 2005. Disponível em: https://psychnews.psychiatryonline.org/doi/full/10.1176/pn.40.16.00400003

– WHO: The World Health Report. Mental Health: New Understanding, New Hope, 2001. Disponível em: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/42390/WHR_2001.pdf?sequence=1&isAllowed=y

– CNN Brasil: Entenda todas as investigações envolvendo a Prevent Senior. 2021
https://www.cnnbrasil.com.br/politica/entenda-todas-as-investigacoes-envolvendo-a-prevent-senior/

– Ventura e Bueno: De líder a paria de la salud global: Brasil como laboratorio del “neoliberalismo epidemiológico” ante la Covid-19, 2021. Foro Internacional, Colegio de Mexico. Disponível em: https://forointernacional.colmex.mx/index.php/fi/article/view/2835/2760

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