Com 21 anos, um médico ginecologista olhou fundo nos meus olhos e me disse que sentir dor era normal. Minha primeira reação foi me sentir traída: há uma relação de confiança entre profissional e paciente; é necessário que exista, para que você possa delegar a um quase desconhecido o cuidado da sua saúde reprodutiva.
Já fazia algum tempo que a medicina me fazia sentir menos humana, mais pedaço de carne. Tudo que importava era eu estar “saudável” para um dia – como diria Brás Cubas – transmitir a alguma criatura o legado de nossa miséria (para os menos poéticos, procriar). Sintomas considerados secundários como dor, desconforto, alterações de humor, sangramentos excessivos e qualquer outra coisa que estivesse arruinando minha vida diária eram desimportantes. Com 19 anos, uma pílula anticoncepcional me dava sintomas de depressão e a recomendação médica foi continuar tomando.
Clare Wenham descreve essa experiência em Feminist Global Health Security, quando coloca que as discussões globais caem na armadilha de equalizar experiências de saúde ligadas a gênero com saúde reprodutiva. Para ela, há a reprodução de suposições paternalistas sobre as mulheres, reduzindo-as à sua função biológica e, fundamentalmente, obscurecendo o efeito desigual de questões de saúde sobre as mulheres biologicamente.
Segundo a OMS, a endometriose afeta cerca de 10% (190 milhões) das pessoas biologicamente do sexo feminino em idade reprodutiva no mundo. Ninguém sabe a causa, e ninguém sabe a cura. Se criássemos o País da Endometriose, ele seria o oitavo mais populoso do mundo.
A mesma página da OMS também diz que a endometriose é subdiagnosticada e diagnosticada tardiamente porque ela tem sintomas “genéricos” – traduz-se: dor. Especialmente durante a menstruação e em relações sexuais (dois tópicos nada tabu!). Isso gera dois tipos de atraso no diagnóstico, como descrito na revisão feita por Lorraine Culley e colegas “The social and psychological impact of endometriosis on women’s lives: a critical narrative review”. O primeiro é o atraso para que pacientes procurem ajuda, já que há a noção – reforçada pela natureza social privada e vergonhosa da menstruação – de que aguentar cólicas é normal. De que sentir dor é normal. O sofrimento, diz o patriarcado, faz parte de “ser mulher”. É o fardo de Eva por ter seduzido Adão a comer o fruto proibido, e ele se traduz a todo momento na vida feminina: na depilação, no salto alto, no bebê com as orelhas furadas e – o fardo original – no parto.
O segundo atraso no diagnóstico é clínico. Quando a mulher cis ou o homem trans é atendido – nem sempre, inclusive, por queixas específicas; frequentemente a endometriose é descoberta em “check-ups” -, a literatura mostra que é comum encontrarem resistência e descrédito. Quando atendidos por clínicos gerais, muitas vezes não são encaminhados a ginecologistas. Tais pacientes sofrem “inseguranças diárias”, como coloca Wenham ao descrever a necessidade de reconhecermos a influência da violência estrutural de gênero nas políticas de saúde pública.
Com o diagnóstico, pela minha própria experiência, pouco muda. Há um tratamento principal: não menstruar. A endometriose é causada por partes do tecido do endométrio que saem do útero e se espalham, especialmente nos ovários e no exterior do útero, podendo também impactar órgãos como a bexiga e o intestino. Há um risco real de infertilidade – tanto pelos próprios cistos hemorrágicos juntando ligamentos e bloqueando o caminho do óvulo, por exemplo, quanto pela possível necessidade de cirurgia radical esterilizante caso se espalhem muito.
O processo de formação de cistos ocorre durante a menstruação, então impedi-la é entendido como essencial. Aí entram os anticoncepcionais, e com eles, outra miríade de problemas. A criação da pílula foi uma revolução sexual e social, dando à mulher a liberdade sobre seu corpo. Para mim? É uma prisão. Da mesma forma que a endometriose e outras doenças ligadas à mulher têm pouquíssimo investimento em pesquisa, tratamentos e exames sofrem o mesmo destino. Todos nos lembramos do anticoncepcional masculino que foi descartado por causa de efeitos colaterais, enquanto os femininos têm um risco aumentado comprovado de trombose (entre outros problemas), e isso é simplesmente normalizado.
O pior de tudo, eu diria, é a incerteza. Ir ao ginecologista parece ir à terapia às vezes. É comum me oferecerem vários caminhos e falarem “mas o que você quer fazer?”, com pouca ou nenhuma orientação sobre o que é mais indicado. Com o desconhecimento da ciência sobre a saúde feminina, parece que você tem que ter um PhD em ginecologia para conseguir guiar o seu tratamento. Como não há cura, todo tratamento é uma loteria. Pode funcionar, ou não. E a escolha? Toda sua. Você é dona do seu futuro! É desesperador. E toda opção é incrivelmente invasiva.
Como demonstrado por Sarah E Davies e suas colegas em “Why it must be a feminist global health agenda”, a desigualdade de gênero é frequentemente informal e privada. São necessárias mudanças formais e informais nas instituições de governança de saúde mundial para que a pesquisa e as metodologias sejam feministas, indo além de métodos positivistas e pensando em etnografia, observação participativa e, não menos importante, em abrir espaços para que as histórias das pessoas sejam ouvidas.
A saúde é uma esfera essencial para alcançar a verdadeira igualdade de gênero. Desde o acesso à saúde (uma a cada quatro brasileiras já faltou à escola por não ter absorventes), até a qualidade dessa saúde, que perpassa questões econômicas (mulheres recebem mais de 25% a menos do que homens, enquanto emprego formal ainda é exceção entre pessoas trans) e de conhecimento: é necessário que governos levem a sério a vida da mulher. E não só enquanto instrumento de reprodução, mas enquanto um ser humano com uma vida e ambições próprias. Enquanto uma pessoa digna de qualidade de vida, e não só de sobreviver. De ter saúde, e não só de não ter doença.
Livre, saudável, e sob controle do próprio corpo. Esses dias, o México descriminalizou o aborto. É o tipo de notícia que me faz querer abraçar minhas companheiras e companheiros e dizer: o caminho é longo, mas nós somos fortes. Às vezes cansa, mas somos. Somos fortes.
Referências
BENETTI, Estela. Diferença salarial entre homens e mulheres na mesma função pode gerar multa. NSC Total. 1 abril 2021. Disponível em: <https://www.nsctotal.com.br/colunistas/estela-benetti/diferenca-salarial-entre-homens-e-mulheres-na-mesma-funcao-pode-gerar>.
COLOMBO, Silvia. Suprema Corte do México descriminaliza o aborto no país. Folha de S. Paulo. 7 set. 2021. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021/09/suprema-corte-do-mexico-descriminaliza-o-aborto-no-pais.shtml>.
COX, H.; SKI, C.; WOOD, R; SHEAHAN, M; Endometriosis, an unknown entity: the consumer’s perspective. Int J Consum Stud 2003a;3:200–209.
COX, H; HENDERSON, L; ANDERSEN, N; CAGLIARINI, G; SKI, C. Focus group study of endometriosis: struggle, loss and the medical merry-go-round. Int J Nurs Pract 2003b;1:2 – 9.
CULLEY, L et al. The social and psychological impact of endometriosis on women’s lives: a critical narrative review. Human Reproduction Update, Vol 19, Edição 6, Páginas 625–639. Novembro/Dezembro 2013.
DAVIES, S. E et al. Why it must be a feminist global health agenda. Viewpoint, Vol 393, Edição 10171, Páginas 601-603, Fevereiro 2019.
DEMARTINI, Marina. Por que os testes do anticoncepcional masculino foram suspensos. Veja Saúde. 7 nov. 2016. Disponível em: <https://saude.abril.com.br/medicina/por-que-os-testes-do-anticoncepcional-masculino-foram-suspensos/>.
ENDOMETRIOSIS. World Health Organization, 2021. Disponível em: <https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/endometriosis>.
FERREIRA, Letícia. Emprego formal ainda é exceção entre pessoas trans. Folha de S. Paulo. 29 jan. 2020. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/01/emprego-formal-ainda-e-excecao-entre-pessoas-trans.shtml>.
FILIPPE, Marina. Always: 1 a cada 4 mulheres faltou a aula por não poder comprar absorvente. Exame. 3 maio 2021. Disponível em: <https://exame.com/marketing/always1-a-cada-4-mulheres-faltou-a-aula-por-nao-poder-comprar-absorvente/#:~:text=Segundo%20a%20pesquisa%2C%20no%20Brasil,negativamente%20o%20seu%20rendimento%20escolar>.
WENHAM, C. Feminist Global Health Security. Oxford University Press, 2021.
Muito interessante seu artigo! Esses dias li uma matéria no The Guardian que falava exatamente sobre isso. A dificuldade que as mulheres encontram no ginecologista, dizendo que sentir dor é “normal”, também pode ser estendida para outras áreas de especialidade médica. O artigo fala sobre como as reclamações de uma mulher foram frequentemente desconsideradas como “stress” até que descobriram que ela tinha câncer em um estágio muito avançado. Segundo os autores, mulheres como um grupo “recebem menos intervenções e menos oportunas, recebem menos tratamento para a dor e são menos frequentemente encaminhadas a especialistas”.
Obrigada por compartilhar com a gente sua reflexão, Gaby. As pessoas biologicamente do sexo feminino, de fato, não têm autonomia sobre o próprio corpo do ponto de vista da ciência, seja por falta de conhecimento sobre as condições que nos afetam, seja pela incapacidade perante a lei de decidir questões que dizem respeito somente a nós e nossa saúde reprodutiva. Um exemplo escancarado vem da própria Constituição do Brasil, que dita que “é necessário ter ao menos 25 anos ou dois filhos para fazer uma laqueadura, e também ser casada para que o marido assine a autorização. Na ausência de um marido, o pai pode assinar. Se tiver pai.” Também recentemente, foi trazido à tona que os postos de saúde em SP pedem autorização dos maridos para uma que suas companheiras possam colocar DIU. É triste e exaustivo nos deparar com uma realidade médica e legislativa tão atrasada, mas as pequenas conquistas mostram que ainda há esperança de que, num futuro próximo, possamos evoluir nesse sentido.
Obrigada pelo relato Gabi! Acho que toda mulher já sentiu esse descaso e desconfiança com profissionais da saúde que normalizam nossa dor. E como tudo, isso é agravado quando levamos em conta desigualdades sociais e raciais. Lembrei de um estudo de 2005 que mostrou como mulheres negras e pardas tinham chances menores de receber anestesia durante epistomias (https://www.scielo.br/j/csp/a/LybHbcHxdFbYsb6BDSQHb7H/?format=pdf&lang=pt). Segundo as pesquisadoras, isso é um reflexo do racismo estrutural e do estereótipo racista que mulheres negras seriam mais fortes e mais resistentes à dor que mulheres brancas.
Excepcional o seu texto, Gabriela. Partindo de um relato pessoal, você trouxe toda a universalidade do tema. De tal forma que, mesmo sem ter enfrentado problema semelhante, a identificação é inevitável. Tenho 60 anos, já vivenciei e presenciei fatos e situações suficientes para concordar que o caminho é longo e cansativo. Mas…. estamos juntas.
É impressionante como o corpo da mulher é negligenciado, sua dor diminuída e a investigação e diagnóstico dos seus problemas chega por vezes a beirar o absurdo. Desde tempos antigos com a histeria tão falada durante a Era Vitoriana até hoje, com por exemplo a total banalidade na indicação do uso de medicamentos anticoncepcionais. Acho que é uma experiência quase universal que quase todas nós já sentimos nossas dores invalidadas ou diminuidas até mesmo por profissionais em quem deveríamos poder confiar. Compartilho os sentimentos das outras meninas que também comentaram no seu texto, e obrigada por compartilhar seu relato Gaby!
Somos fortes e vamos juntas 🙂