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(R)Existência das mulheres e desempenho do cuidado: questões de gênero na pandemia de COVID-19, de Letícia Gabriela da Silva

30 setembro 2021

(R)Existência das mulheres e desempenho do cuidado: questões de gênero na pandemia de COVID-19, de Letícia Gabriela da Silva

Embora a palavra care seja traduzida como cuidado, na verdade seu conceito é muito mais abrangente, pois envolve um conjunto de agenciamentos complexos de ações, atitudes e disposição para com o outro, este conjunto de práticas pode ser realizado de forma remunerada ou não, entretanto, todas as formas envolvem afetos e a maioria de nós precisa deles (HIRATA e GUIMARÃES, 2012; BELLACASA, 2017). Entretanto, na ocorrência da pandemia, diversas questões insurgentes problematizam e apresentam questões comuns, mas de difícil resolução.

 Direcionar o pensamento nesse sentido é fundamental para arrolar as questões que atravessam as mulheres durante a pandemia, principalmente se considerarmos as diferentes implicações político-sociais do vírus que exigiram neste universo plural, formas distintas de existência, visto que a pandemia afetou homens e mulheres de forma distinta e potencializou as desigualdades (UN WOMEN, 2021), além disso, dentro do próprio feminino as múltiplas questões diferem e demanda reflexões que considerem todas as mulheres.

Quero frisar que ao colocar as questões acerca do cuidado, principalmente no tocante ao gênero, me refiro a este como um componente de construção social e não da biologia, reconhecendo inclusive as interseccionalidades que atravessam as esferas de raça, classe e cultura (BEAUVOIR, 2009; COLINS, 2017). Em eventos de saúde anteriores é notória a carga física, emocional e política atribuída à mulher, como no controle da fertilidade decorrente da síndrome congênita durante a epidemia de Zika no Brasil (VENTURA et al, 2021), cuidado com doentes e corpos de entes queridos na epidemia de Ebola no continente africano (PIMENTA, 2018) e recentemente a emergência da COVID-19 (WENHAM, 2021).

Se pensarmos nas questões das mulheres menstruantes, principalmente no âmbito reprodutivo, além das gravidas e puérperas que estão convivendo com a carga emocional de incerteza em relação ao adoecimento, o acesso à contracepção, direito ao abortamento seguro e a atenção à saúde, são matérias importantes que nessa ocasião estão postas em segundo plano por alguns países. Entretanto, a discussão sobre fecundidade, envelhecimento populacional e diminuição da expectativa de vida, contribuem para que os temas acerca da saúde da mulher sejam descolados das diferentes necessidades e centrados sobretudo na biologização, excluindo todas as dinâmicas políticas, sociais e culturais ocorrentes.

Além disso também, para as mulheres não menstruantes, o evento sanitário reforçou problemas ocorrentes há tempos, como a negligencia do Estado, feminicídios, desemprego, falta de moradia, trabalho informal, preconceito, baixa escolaridade e ausência da rede de apoio familiar que agravou ainda mais o processo de vulnerabilização, tal fato também se deve muito pela repercussão de seus corpos e o estigma negativo atrelados a eles, tratados sempre em aspectos de “doença” negligenciando seu processo transexualizador e suas demandas particulares (LIMEIRA e NUNES, 2020; DI BELLA, 2020; ROCOM et al, 2020; BUTLER, 2009).

Em relação ao cuidado no âmbito familiar, a permanência em casa intensificou a carga de tarefas domesticas de limpeza, alimentação, organização e assistência infantil que muitas vezes foi somada à carga de trabalho home office (WENHAM, 2021). Segundo a UN Women (2021), mundialmente 70% dos trabalhadores da saúde são mulheres e ocupam postos de produção direta do cuidado, principalmente em postos de enfermagem. Além disso, a disparidade de gênero em relações heterossexuais é notável, enquanto para homens que convivem com parceiras e filhos, a taxa de participação de trabalhos (LFPR) é de 97%, para as mulheres o indicador corresponde a 48%.

 Outro exemplo de vulnerabilização do gênero são os índices de violência. No Brasil, foi observado aumento exponencial da violência doméstica e feminicídios que teve aumento de 400% no Mato Grosso e 300% no Rio Grande do Norte, além do aumento de 44% no número de atendimentos por violência doméstica no Estado de São Paulo (FSP, 2020). Em relação às profissionais de saúde, a pandemia além do vírus, têm contribuído para ocorrência de violência no ambiente de trabalho relacionada principalmente à intersecção de discriminações em função do gênero, raça e cor (UN WOMEN, 2021b).

Mesmo com todas as estatísticas sobre violência e comprovada carga psicossocial, somadas à COVID-19, podemos observar que globalmente as estatísticas onerosas às mulheres persistem, com desvantagens claras em relação aos homens e que quando consideradas  na  diversidade do gênero o quadro é agravado, pois também faltam dados que auxiliem na visibilidade das questões. Além disso, a depender de sua nacionalidade, sexualidade, construção, migração, religião e cor, a ausência de políticas públicas suficientes para equalizar as questões coloca em xeque sua própria existência.

Referências

Hirata, H.; Guimarães, N.A. Cuidado e Cuidadoras: As várias faces do trabalho do care. São Paulo: Atlas, 2012.

Bellacasa, M.P. Matters of Care: Speculative Ethics in More than Human Worlds. Minneapolis: University of Minesota Press, 2017.

UN Women. Violence against women and girls data collection during COVID-19. Disponível em:< https://www.unwomen.org/en/digital-library/publications/2020/04/issue-brief-violence-against-women-and-girls-data-collection-during-covid-19>. Acesso 28 set 2021.

Beauvoir, S. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

Collins, P.H. What’s in a Name? Womanism, Black Feminism, and Beyond. Journal of Black Studies and Research. 2015; 26(1): 9-17.

Ventura, D; Rached, D; Martins, J; Pereira, C; Trivellato, P; Guerra, L. A rights-based approach to public health emergencies: The case of the ‘More Rights, Less Zika’ campaign in Brazil. Global public health. 2020; 16(10): 1576-1589.

 Pimenta, D. If you suspect a case of Ebola… Free call: 177” – Ensaio sobre a militarização da saúde na Serra Leoa durante período da epidemia de Ebola (2014-2016). Cadernos de campo. 2018; 27(1): 85-117.

Wehan, C. Feminist Global Health Security. New York: Oxford University Press, 2021.

Limeira, W; Nunes, A. O abandono de pessoas trans durante a pandemia. Le Monde Diplomatique Brasil. Disponível em:< https://diplomatique.org.br/o-abandono-de-pessoas-trans-durante-a-pandemia/>. Acesso 28 set 2021.

Di Bella, G. Acostumadas ao isolamento, mulheres trans enfrentam outros desafios na pandemia. National Geografic. Disponível em:< https://www.nationalgeographicbrasil.com/fotografia/2020/12/ainda-mais-excluidas-a-vida-de-mulheres-transexuais-durante-a-pandemia>. Acesso 28 set 2021.

Rocom, P.C; Rodrigues, A; Sodré, F; Barros, M.E.B; Mação, I.R. Violência doméstica durante a pandemia de Covid-19. Aceno. 2020; 7(13): 165-180.

Butler, J. Desdiagnosticando o gênero. Physis. 2009; 19(1):95-126.

UN Women. Beyond COVID-19: A feminist plan for sustainability and social justice. Disponível em:< https://www.unwomen.org/en/digital-library/publications/2021/09/feminist-plan-for-sustainability-and-social-justice>. Acesso 27 set 2021.

Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FSP). Violência doméstica durante a pandemia de Covid-19. São Paulo; 2020.

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Amanda Gonçalves Machado
2 anos atrás

Muito interessante o post! Em mais uma emergência de saúde, vemos as mulheres como sendo as “mais infectadas e as mais afetadas”, como estudamos há poucas aulas com a epidemia de Zika. A vulnerabilidade das mulheres sem dúvida aumentou muito durante a pandemia e é muito triste pensar (e constatar com números) que o ambiente no qual elas deveriam se sentir mais seguras – suas próprias casas – se tornaram mais um local de violência e exploração feminina.

Larissa Capovilla
2 anos atrás

Muito obrigada pelo texto, Letícia! O tópico do fardo que recai sobre as mulheres em tempos de crise sanitária sempre me lembra da leitura crítica que Silvia Federici faz em O Calibã e a Bruxa, em que ela argumenta que o trabalho doméstico feminino não remunerado – o processo de reprodução, como ela coloca – foi essencial para que o capitalismo – o processo de produção – pudesse existir. A lógica desse processo parece se transferir para as crises sanitárias: o maior ônus da crise econômica e sanitária, assim como a responsabilidade pelo cuidado que o agrava, recai sobre as mulheres para que o restante da sociedade não arque com ele. Realmente, a violência de gênero não vislumbra um fim sem que a sociedade se desvincule desse processo. 

Átila Teixeira
2 anos atrás

Ótimo artigo, Letícia! Gostei da forma que você abordou o tema, buscando destacar as diferentes dimensões em que as mulheres são impactadas nesses contextos de emergência sanitária. Adicionando a sua argumentação, queria comentar sobre o papel do Estado nessa lógica, o qual institucionaliza a assimetria de gênero e atribui às mulheres uma responsabilidade desproporcional. É curioso pensar que a esfera pública, ao mesmo tempo que é extremamente prejudicial e responsável por tal situação, também me parece ser a principal alternativa para subversão deste sistema patriarcal. Enfim, deixo aqui uma sugestão de artigo que explora uma perspectiva antropológica do tema, passando pela ideia do conceito care e pontuando como as atribuições domésticas foram impostas às mulheres durante a pandemia. Vale a leitura!