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Racismo ambiental: uma perspectiva de Volta Redonda, de Nina Oliveira Schettino de Souza

13 novembro 2021

Racismo ambiental: uma perspectiva de Volta Redonda, de Nina Oliveira Schettino de Souza

Imagine esta situação: Você se muda para um novo condomínio, num terreno pertencente há anos pela maior fábrica da cidade, e constrói sua vida no local. Ao longo do tempo, você começa a sofrer com graves problemas de saúde – sérias alergias, coceiras, manchas, bronquite – que parecem ser piorados pelos seus arredores. Após anos, recebe a notícia que o Instituto Estadual do Meio Ambiente (Inea) comprovou que existem 24 substâncias tóxicas nesse terreno, considerado intolerável para espaços habitacionais, sendo necessária a rápida realocação dos moradores. Isso explica as suas complicações médicas, mas te desespera, pela possibilidade de ter que se retirar da casa que construiu e não saber para onde conseguirá mudar dependendo do rumo desse processo. Consegue imaginar? Isso aconteceu em Volta Redonda, cidade no interior do Rio de Janeiro, resultando em um embate entre a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), o Inea, o Ministério Público Federal do Rio de Janeiro (MPF/RJ) e os moradores do condomínio Volta Grande IV. 

Durante a construção dos bairros de operários e de funcionários de cargos mais altos da CSN, esses repetiam a hierarquização existente no mundo da fábrica (Veiga & Fonseca, 1990; Fontes & Lamarão, 1986). Segundo Peiter e Tobar (1998), ao comparar os bairros mais antigos da cidade, percebe-se uma nítida segregação sócio-espacial. As áreas menos poluídas, ou seja, construídas numa posição anterior à interferência industrial, são ocupadas por grupos mais ricos, enquanto os grupos de menor renda ocupam áreas mais poluídas. Contudo, esse cenário não é pontual ou raro: durante a Revolução Industrial francesa, mesmo com o desenvolvimento que possibilitava a instalação de oficinas em qualquer lugar e não mais apenas nas margens dos rios, os bairros burgueses permaneceram relativamente isolados dos novos assentamentos, enquanto as áreas da classe trabalhadora se tornam os ancoradouros da indústria insalubre (LE ROUX, 2014). Logo, desde os primórdios da usina na cidade, a desigualdade social e o racismo ambiental estão presentes na relação que o impacto daquela ao meio ambiente gera na saúde da população. 

No caso do condomínio Volta Grande IV, seu terreno foi doado pela siderúrgica ao Sindicato dos Metalúrgicos do Sul Fluminense em meados dos anos 90, para a construção de um conjunto habitacional destinado aos empregados da CSN. Desde 2004 havia suspeitas de contaminação no local, tendo em vista os depósitos de resíduos industriais na área (entre 1986 e 1999), que funcionavam como um “lixão” da siderúrgica, mas a doação possuiu licenciamento ambiental do Feema (agora Inea) e da prefeitura volta-redondense. Em uma pesquisa de março de 2013, o Inea apontou a presença de 24 substâncias tóxicas no terreno, em um nível além do tolerado pela saúde humana. Dados constatados apontam uma proporção de cádmio de 38,1 mg/kg, enquanto o máximo previsto para áreas residenciais é de 8 mg/kg; 1.614,2 mg/kg de cromo, sendo que o máximo tolerado é de 300 mg/kg; e de substâncias proibidas no Brasil, como o ascarel, com concentração de 2,73666 mg/kg (LOVATO, 2013). Até hoje (2021), há um depósito a céu aberto da Companhia utilizado para o descarte de resíduos industriais, que abarca parte do conjunto Volta Grande IV e se encontra do lado do rio Paraíba do Sul e de sua vegetação. Isso resultou, em 2016, na denúncia do MPF à empresa e seus representantes pelo “descarte de resíduos industriais perigosos sem as devidas licenças ambientais”. Assim, pode-se interpretar tais ocorrências pela ótica do racismo ambiental.

Conforme o Dr. Benjamin Franklin Chavis Jr., liderança do movimento negro estadunidense e criador do termo, Racismo Ambiental é “a discriminação racial nas políticas ambientais, na escolha de comunidades de cor para depositar rejeitos tóxicos e instalar indústrias poluidoras, no sancionar oficialmente a presença de venenos e poluentes que ameaçam vidas nas comunidades de cor; e excluir as pessoas de cor, historicamente, dos principais grupos ambientalistas, dos comitês de decisão e das instâncias regulamentadoras”. Aprofundando na lógica dessa injustiça, segundo Kerry Ard¹, em reportagem à UOL, “Alguns estudiosos argumentam que a injustiça ambiental é essencial no capitalismo. (…) [Nele] há o que se chama de externalidades, coisas que acontecem ao se fazer os negócios (como poluição) e pelas quais a empresa não assume responsabilidade. As externalidades vão afetar alguém ou algum lugar, então é útil ter uma população com menor valor na sociedade para assumir esses efeitos”. 

Então, considerando que no Brasil as categorias de raça e classe social estão relacionadas e que, ao longo do tempo, o conceito de racismo ambiental se ampliou para abarcar outros grupos minoritários – ribeirinhos, imigrantes, população indígena, etc -, pode-se considerar que as violações no condomínio Volta Grande IV tratam-se de racismo ambiental. Contudo, mesmo com a seriedade desses crimes que, ao interpretar por tal perspectiva, deixam de ser apenas ambientais, os responsáveis não reconhecem a gravidade da situação. Em 2012, estudos encomendados pela CSN à empresa de consultoria ambiental estadunidense NewFields sobre a contaminação do terreno foram concluídos, sendo estes apresentados aos moradores do condomínio em 2017 numa reunião com o título “Volta Grande IV – bairro seguro”. Esse laudo foi criticado pelo Inea e pela Fiocruz, fundação que estava realizando pesquisas na área. “O estudo da CSN é unilateral. Hoje existe uma licença de recuperação ambiental da área, não este aval de bairro seguro, como afirma a companhia”, afirmou uma assessora do Inea, em reunião com os moradores. 

¹ Doutora em Sociologia e professora de Meio Ambiente e Recursos Naturais na Ohio State University

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALENCAR, Emanuel. CSN ainda deve R$ 16 milhões de compromisso ambiental. Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/csn-ainda-deve-16-milhoes-de-compromisso-ambiental-8073302. Acesso em: 11 nov. 2021.

BLOG COMBATE RACISMO AMBIENTAL. Decisão do STJ obriga Harsco e CSN a limitar lançamento de escória às margens do Paraíba do Sul. Disponível em: https://racismoambiental.net.br/2020/02/20/decisao-do-stj-obriga-harsco-e-csn-a-limitar-lancamento-de-escoria-as-margens-do-paraiba-do-sul/. Acesso em: 11 nov. 2021.

BLOG COMBATE RACISMO AMBIENTAL. Denúncia do MPF contra CSN e seus diretores por crime ambiental está conclusa para sentença. Disponível em: https://racismoambiental.net.br/2019/09/27/denuncia-do-mpf-contra-csn-e-seus-diretores-por-crime-ambiental-esta-conclusa-para-sentenca/. Acesso em: 11 nov. 2021.

CARVALHO, Diana; SCHIMIDT, Fernanda. RACISMO AMBIENTAL. Disponível em: https://www.uol.com.br/ecoa/reportagens-especiais/racismo-ambiental-comunidades-negras-e-pobres-sao-mais-afetadas-por-crise-climatica/#cover. Acesso em: 11 nov. 2021.

DIÁRIO DO VALE. MPF, MPRJ e Inea questionam alegação de que Volta Grande IV é seguro. Disponível em: https://diariodovale.com.br/tempo-real/mpf-mprj-e-inea-quastionam-alegacao-de-que-volta-grande-iv-e-seguro/. Acesso em: 11 nov. 2021.

FOCO REGIONAL. Estudo conclui: Volta Grande IV é seguro. MPF critica CSN. Disponível em: https://www.focoregional.com.br/Noticia/estudo-conclui-volta-grande-iv-e-seguro-mpf-m. Acesso em: 11 nov. 2021.

FOCO REGIONAL. Inea diz que não corrobora laudo da CSN sobre Volta Grande. Disponível em: https://www.focoregional.com.br/Noticia/inea-diz-que-nao-corrobora-laudo-da-csn-sobre. Acesso em: 11 nov. 2021.

JORNAL A VOZ DA CIDADE. Denúncia do MPF contra CSN e seus diretores por crime ambiental está a espera de sentença judicial. Disponível em: https://avozdacidade.com/wp/concluida-para-sentenca-a-denuncia-do-mpf-contra-csn-e-seus-diretores-por-crime-ambiental/. Acesso em: 11 nov. 2021.

JUNIOR, Cirilo. Volta Redonda: moradores alegam ter sido contaminados por empresa. Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/ciencia/sustentabilidade/meio-ambiente/volta-redonda-moradores-alegam-ter-sido-contaminados-por-empresa,7e24c4b74973e310VgnVCM4000009bcceb0aRCRD.html. Acesso em: 11 nov. 2021.

LE ROUX, Thomas. Les paris de l’industrie, 1750-1920. Paris: Créaphis Éditions, 2014.

LOVATO, Marcos Luiz. Direito à informação e o silêncio institucionalizado no caso da contaminação do solo em Volta Redonda. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE DIREITO E CONTEMPORANEIDADE, 2013, Santa Maria. Anais do 2º Congresso Internacional de Direito e Contemporaneidade: mídias e direitos da sociedade em rede. Santa Maria: Universidade Federal de Santa Maria, 2013.

MATHIAS, Maíra. O que é Racismo Ambiental. Disponível em: https://racismoambiental.net.br/2017/03/14/o-que-e-racismo-ambiental/. Acesso em: 11 nov. 2021.

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ROCHA, Náthaly Lacerda Tonon e; GUIMARÃES, Claudinei de Souza. Estudo da qualidade do ar e a atividade siderúrgica na cidade de Volta Redonda. Cadernos UniFOA, Volta Redonda, n. 33, p. 25-36, abr. 2017.

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VILLELA, Flávia. Maioria das famílias que moram em terreno contaminado em Volta Redonda não quer deixar o local. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/04/05/maioria-das-familias-que-moram-em-terreno-contaminado-em-volta-redonda-nao-quer-deixar-o-local.htm. Acesso em: 11 nov. 2021.

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Maria Carolina Amorim
2 anos atrás

Que ótimo texto, Nina! Fiquei realmente surpresa de saber desse caso, fico até impressionada com o fato de, quando sai do eixo dos grandes centros, esses absurdos acabam não sendo divulgados e esquecidos. O descaso da CSN com os moradores de Volta Redonda me lembrou da Vale, que mesmo com a tragédia do rompimento da barragem de Brumadinho, conseguiu sair da situação com danos minimizados. Gostei também da associação que você fez com o racismo ambiental, porque as vezes analisamos essas coisas com olhos tão automáticos que não pensamos nas suas razões mais Intrínsecas.

Marina Sujkowski Lima
2 anos atrás

Gostei muito da sua reflexão, Nina. Essa intersecção entre geografia, meio ambiente e saúde é muito importante e visível em nossa realidade. As populações marginalizadas e vulneráveis são sempre empurradas para as periferias ou para ambientes destruídos por grandes empresas, impedindo-as de terem vidas dignas e saudáveis. E não falta exemplos de tragédias ambientais e sanitárias causadas pelo impacto de grandes empresas aqui no Brasil: a construção da usina de Belo Monte, por exemplo, trouxe sérias consequências para as populações indígenas e ribeirinhas ao redor do Rio Xingu; a Braskem é responsável pelo afundamento de um bairro em Maceió por conta da mineração. São projetos de “desenvolvimento” e “crescimento econômico” que passam por cima de muitas vidas.