Considerada como uma das doenças infecciosas mais antigas que se tem conhecimento com registros que indicam sua presença no início da humanidade (BERTOLLI FILHO, 2001), a tísica pulmonar, doença do peito, peste branca ou tuberculose (TB), perpassa séculos de acometimentos e permanece hoje sendo uma das principais preocupações da saúde pública.
Embora o professor universitário camaronês, Achille Mbembe, em seu ensaio “The Universal Right to Breathe”² reflita sobre os atuais tempos de brutalismo evidenciado pela ocorrência da emergência global da Covid-19, o impasse que o autor discute ao vislumbrar o futuro da humanidade condiz com as expectativas e os desafios para mitigar qualquer agravo tendo como vertente a determinação social da saúde em um mundo guiado pelo neoliberalismo. Nesse sentido a tuberculose não é diferente tendo forte correlação com as disparidades sociais.
Antes da emergência do vírus Sars-Cov-2, a bactéria Mycobacterium tuberculosis, agente etiológico da tuberculose, era a primeira causa de morte causada por um único agente infeccioso no mundo à frente do HIV/Aids. Dados anteriores indicam sua magnitude: em 2018 a OMS anunciou que a TB afeta ⅓ da população mundial e que aproximadamente 10 milhões de pessoas desenvolvem a doença a cada ano (WHO, 2018).
No contexto de pandemia, o cenário piorou: menor número de pessoas diagnosticadas e notificadas, redução na oferta de tratamento preventivo e maior mortalidade⁴. Segundo o relatório de 2020 sobre a tuberculose, lançado em outubro deste ano, é a primeira vez desde 2005 que se aumentaram os casos de óbitos: a doença provocou a morte de cerca de 1,3 milhão de pessoas soronegativas e dentre as pessoas que vivem com HIV, 214 mil (WHO, 2021).
Em vista disso, o declínio do número de pessoas notificadas com TB, resultado da subnotificação dos casos dado o foco dos serviços em saúde à Covid-19, o maior repercussão se deu na redução em 18% de pessoas diagnosticadas e tratadas, de 7,1 milhões em 2019 para 5,8 milhões em 2020. Em resumo, especialistas apontam, que a pandemia eliminou 12 anos de progresso na luta global contra a tuberculose tornando mais distante as metas estabelecidas na agenda dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU.⁶
No Brasil, o país continua entre os 30 países classificados pela OMS de alta carga para a TB e para a coinfecção TB-HIV. Sendo a primeira causa de morte das doenças infecciosas em pacientes imunodeprimidos e a 4ª causa de morte por doenças infecciosas, em 2019 registrou-se 77 mil casos nacionais e 4,5 mil mortes (BRASIL, 2019). Não obstante, o descaso e enfraquecimento de políticas de proteção social no governo Bolsonaro podem comprometer ainda mais as agendas e acordos assinados mundialmente para acabar com a epidemia de tuberculose.
Favorece para a análise, além da atual política de austeridade e o teto de gastos (EC 95/2016) em que se promove o desfinanciamento do SUS, a insegurança social que poderá causar a incerteza do “Auxílio Brasil”, substituto do programa Bolsa Família extinto com a Medida Provisória 1.061 podem assim comprometer o bem estar de milhões de famílias.⁸
O programa que tinha completado 18 anos nos quais reduziu a pobreza, diminuiu a mortalidade infantil, e melhorou indicadores de insegurança alimentar entre os mais vulneráveis. Repercutindo também nos índices da tuberculose como demonstram diversos estudos epidemiológicos nos quais evidenciam a associação entre o programa de 2004 e a redução da incidência e mortalidade no país e a influencia positivamente no desfecho do tratamento ao agravo. ⁹ ¹º ¹¹
O programa Bolsa Família através da transferência de renda para pessoas em situação de pobreza e extrema pobreza com o intuito de melhorar condições socioeconômicas e reduzir a vulnerabilidade promove implicitamente a diminuição do risco de infecção à TB e a outros fatores de risco para seu adoecimento como: má nutrição, desemprego, condições de moradia precárias, etc. Juntamente com a Estratégia Saúde da Família baseada nas diretrizes da Atenção Primária à Saúde, que busca promover cuidado e acesso ao serviço de saúde com melhores intervenções para melhorar a qualidade de vida integrada com a realidade do território e da população durante os 6 meses de tratamento, se traduz em indicadores com maiores taxas de adesão e cura ao itinerário terapêutico daqueles que sofrem com a tuberculose.¹²
Como consequência, não somente os acordos e objetivos estão em ameaça mas milhões de vida ao redor do mundo. Ao passo que os último relatórios da OMS e do Boletim Epidemiológico ressaltam maior foco dos serviços para a questão deve-se também que no mundo pós-Covid se tome caminhos inversos dos que foram até então, contrários por exemplo aos interesses daqueles agentes globais que se aproveitam de negligenciar as obrigações concernentes à adoção de um enfoque em direitos humanos (VIEGAS, VENTURA e SILVA, 2021).
Assim sendo, abordagens baseadas nos estudos críticos da saúde global se traduzem como novas oportunidades para garantir um futuro inspirável pois além de reconhecer as falhas e limitações dos modelos atuais também se propõe novas e diferentes interações como João Biehl indica o fortalecimento da antropologia da saúde e etnografias na reinvenção de agendas e estratégias no campo da saúde global (BIEHL, 2016).
Portanto, entre a redistribuição desigual da vulnerabilidade e a possibilidade de se ter o direito universal à respiração, a tuberculose, embora sendo um adoecimento evitável e tratável, impera-se nos dias de hoje. Afinal não se tem uma vacina para as desigualdades sociais e violências experienciadas por aqueles que não têm o privilégio de poder respirar e viver dignamente.
REFERÊNCIAS:
¹ Bertolli Filho, C. História social da tuberculose e do tuberculoso: 1900-1950 [online]. Rio de
Janeiro. Fiocruz, 2001. 13 – 42 pág. Antropologia & Saúde collection. ISBN 85-7541-006-7. Disponível em https://static.scielo.org/scielobooks/4/pdf/bertolli-8575410067.pdf. Acesso em: 5 de novembro de 2021.
² Mbembe (2021). The Universal Right to Breath. Critical Inquiry 47 . Disponível em: https://www.journals.uchicago.edu/doi/pdf/10.1086/711437. Acesso em: 5 de novembro de 2021.
³ World Health Organization. Global Tuberculosis Report 2018, França: WHO; 2018 disponível em: https://www.who.int/tb/publications/global_report/en/. Acesso em: 5 de novembro de 2021.
⁴ Pai, Madhukar. Covid-19 Wreaks Havoc With The Best Laid Plans To End Tuberculosis. Forbes, 2021. Disponível em: <https://www.forbes.com/sites/madhukarpai/2021/10/14/covid-19-wreaks-havoc-with-the-best-laid-plans-to-end-tuberculosis/>. Acesso em: 5 de outubro de 2021.
⁵ World Health Organization. Global Tuberculosis Report 2021. Geneva: WHO; 2021. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/9789240037021. Acesso em: 5 de novembro de 2021.
⁶ Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca. Pandemia limita ações para a erradicação da tuberculose. Notícias Fiocruz, 2021. Disponível em: <https://portal.fiocruz.br/noticia/pandemia-limita-acoes-para-erradicacao-da-tuberculose>. Acesso em: 5 de outubro de 2021.
⁷ Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis. Manual de Recomendações para o Controle da Tuberculose no Brasil. Brasília: Ministério da Saúde; 2019. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_recomendacoes_controle_tuberculosebrasil_2_ed.pdf. Acesso em: 5 de novembro de 2021.
⁸ BRASIL. Medida provisória nº 1.061, de 9 de agosto de 2021. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF.
⁹ Nery, J. S., Rodrigues, L. C., Rasella, D., Aquino, R., Barreira, D., Torrens, A. W., Boccia, D., Penna, G. O., Penna, M., Barreto, M. L., & Pereira, S. M. (2017). Effect of Brazil’s conditional cash transfer programme on tuberculosis incidence. The international journal of tuberculosis and lung disease : the official journal of the International Union against Tuberculosis and Lung Disease, 21(7), 790–796. https://doi.org/10.5588/ijtld.16.0599
¹º de Souza, R. A., Nery, J. S., Rasella, D., Guimarães Pereira, R. A., Barreto, M. L., Rodrigues, L., & Pereira, S. M. (2018). Family health and conditional cash transfer in Brazil and its effect on tuberculosis mortality. The international journal of tuberculosis and lung disease : the official journal of the International Union against Tuberculosis and Lung Disease, 22(11), 1300–1306. https://doi.org/10.5588/ijtld.17.0907
¹¹ Oliosi, J., Reis-Santos, B., Locatelli, R. L., Sales, C., da Silva Filho, W. G., da Silva, K. C., Sanchez, M. N., de Andrade, K., de Araújo, G. S., Shete, P. B., Pereira, S. M., Riley, L. W., Lienhardt, C., & Maciel, E. (2019). Effect of the Bolsa Familia Programme on the outcome of tuberculosis treatment: a prospective cohort study. The Lancet. Global health, 7(2), e219–e226. https://doi.org/10.1016/S2214-109X(18)30478-9
¹² Moreira, Adriana da Silva Rezende; KRITSKI, Afrânio Lineu; CARVALHO. Ana Cristina Calçado. Determinantes sociais da saúde e custos catastróficos associados ao diagnóstico e tratamento da tuberculose. Jornal Brasileiro de Pneumologia, v,46, n. 5, p. 1-5, 2020.
¹³ Viegas, Ventura e Silva (2021). The proposal of an international convention on response to pandemics: in defense of a human rights treaty for the field of global health.
¹⁴ Biehl (2016) Theorizing global health. Medicine Anthropology Theory, v. 3, n. 2: 127–142.