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Por que o movimento antivacina no Brasil fracassou mais uma vez?, de Saulo Ribeiro Cavalcante Liobino Silva

30 setembro 2021

Por que o movimento antivacina no Brasil fracassou mais uma vez?, de Saulo Ribeiro Cavalcante Liobino Silva

O Brasil tem alta adesão à vacina contra a Covid. A pesquisa do Datafolha, divulgada no mês de agosto deste ano, indica um recorde de aceitação dos imunizantes; apenas 5% das pessoas não pretendem se vacinar. Nesse ritmo, o Brasil deve imunizar 100% da população adulta antes mesmo que os EUA. Fica ainda mais claro que a escolha da Pfizer em fazer do Brasil vitrine de vacinação havia sido deliberadamente estratégica. No entanto, o que explica o sucesso da campanha de vacinação contra a Covid em meio a desincentivos do governo federal, atraso na compra de imunizantes e uma enxurrada de desinformação?

Sem a pretensão de apontar uma correlação direta, devido à proximidade dos acontecimentos acima, devemos refletir sobre três motivos que fizeram dos posicionamentos ideológicos antivacina recentes um fracasso. Podemos apontar a comunicação da campanha pelas prefeituras, o “evento primeira dose” e principalmente a cultura de vacinação. A comunicação das prefeituras via mídias sociais engajou a população combinando a divisão da vacinação por faixa etária com elementos nostálgicos e linguagem descontraída, com uma construção de identidade para cada geração ao melhor estilo “Ai, Gabi, só quem viveu sabe”. Simultaneamente, a ida aos locais de vacinação tornou-se um evento – o dia da primeira dose foi amplamente registrado e compartilhado via Instagram, Twitter e TikTok, e virou trend. Sabendo que um evento que se preze deve ter música e dança, dezenas de prefeituras organizaram apresentações musicais nos locais de vacinação. Dessa combinação podemos considerar o dia da primeira dose o evento mais divulgado do ano na vida dos brasileiros, até agora; como resultado, os memes e registros desses episódios ampliaram ainda mais a imagem positiva da vacinação. 

Contraditoriamente, a comunicação dos municípios teve efetividade justamente quando os objetivos de comunicação do Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a COVID-19 não foram incisivos sobre comunicação social e sua segmentação. O plano tem objetivos de campanha demasiado amplos que não consideram o papel da opinião pública para mobilizar a população nem a particularidade da comunicação para cada público-alvo. Por outro lado, a Estratégia Nacional de Vacinação Contra o Vírus Influenza Pandêmico (H1N1) 2009, de maio de 2010, previu o desenvolvimento de ações de comunicação social para atender formadores de opinião (educadores, profissionais de saúde e sociedade civil), imprensa e publicidade, combinando ações pontuais capazes de influenciar na captação dos grupos prioritários, de acordo com as diferentes etapas, com mensagens que deveriam enfocar características específicas de cada grupo prioritário. Na época, o Brasil foi o país que mais vacinou em relação ao percentual da população total: 42% da população brasileira foi imunizada, índice superior ao registrado, por exemplo, na França (8%) e Alemanha (6%). Em grande parte, como resultado da timidez dos objetivos da campanha de vacinação, a autonomia das prefeituras resultou em sucesso de engajamento da campanha.

Em meio aos altos índices de adesão à campanha, surgiram discussões sobre a cultura de vacinação. O termo, apesar de ultimamente ter se tornado popular, já vem sendo estudado por Gilberto Hochman, pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz da Fundação Oswaldo Cruz e professor do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde (COC/Fiocruz). Como define Hochman (2011), a emergência e o estabelecimento de uma “cultura da imunização” no Brasil se deram a partir da erradicação da varíola, com a criação do Programa Nacional de Imunizações, em 1975. Essa cultura esteve diretamente associada a um processo de introdução de vacinas, campanhas de vacinação e de vacinação em massa empreendidas pelo Estado brasileiro desde o final do século XIX. Além disso, o autor aponta que essa cultura se expressa pela alta adesão da população aos programas de vacinação e pela baixa manifestação de movimentos sociais, científicos ou profissionais contra a imunização no Brasil, como aqueles encontrados nos Estados Unidos e Inglaterra, por exemplo. 

Em síntese, o sucesso e a alta taxa de adesão das campanhas de vacinação no Brasil estão intimamente relacionadas a um bom planejamento e execução de campanhas de vacinação com calendários bem definidos, atrelados a uma sólida e ampla estrutura institucional e material que suportem a mobilização pública em torno da imunização. Apesar de as epidemias, e a insegurança que elas geram, de certa forma explicarem episódios particulares de adesão a campanhas de imunização, não explicam a imunização como rotina social. No entanto, a jornada para imunização completa no país ainda está em curso. Sendo assim, a atenção e energia devem ser redobradas para mobilizar a campanha de maneira que as pessoas continuem voltando para tomar a segunda dose. De modo algum deve-se negligenciar os ganhos do longo processo histórico de campanhas de vacinação, que deixou um legado de adesão à vacinas invejável. 

Referências 

CEE-FIOCRUZ. Combate à epidemia de H1N1: um histórico de sucesso. Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz. 26 jan. 2021. Disponível em: https://cee.fiocruz.br/?q=node/1314

ESTRATÉGIA NACIONAL DE VACINAÇÃO CONTRA O VÍRUS INFLUENZA PANDÊMICO (H1N1) 2009. 2010. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/estrategia_nacional_vacinacao_influenza.pdf

FERNANDES, Augusto. Covid-19: Brasil deve imunizar 100% da população adulta primeiro que os EUA. Correio Brasiliense. 23 ago. 2021. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2021/08/4945310-covid-19-brasil-deve-imunizar-100–da-populacao-adulta-primeiro-que-os-eua.html

HOCHMAN, Gilberto. Vacinação, varíola e uma cultura da imunização no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva16(2):375-386, 2011. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/YWJ7XPqXpmNXNFtBtMbr8Sm/?lang=pt&format=pdf

Jps/ek (ots). Adesão à vacina contra covid chega a 94% no Brasil. Deutsche Welle. 13 de jul. de 2021. Disponível em:https://www.dw.com/pt-br/adesão-à-vacina-contra-covid-chega-a-94-no-brasil/a-58255826

KOZLOV, Max. COVID vaccines have higher approval in less-affluent countries. Nature. 22 jul. de 2021. Disponível em: https://www.nature.com/articles/d41586-021-01987-9

PLANO NACIONAL DE OPERACIONALIZAÇÃO DA VACINAÇÃO CONTRA A COVID-19. 2021. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/coronavirus/publicacoes-tecnicas/guias-e-planos/plano-nacional-de-vacinacao-covid-19

PEREIRA, Cilene. Selfie na hora da vacina contra a Covid-19 aumenta adesão à imunização. Veja. 11 set. 2021. Disponível em: https://veja.abril.com.br/saude/selfie-na-hora-da-vacina-contra-a-covid-19-aumenta-adesao-a-imunizacao/

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AMANDA GONÇALVES MACHADO
2 anos atrás

Belo artigo e belíssimo tema! Apesar da demora para iniciar a imunização a nível nacional, em meio a tantos absurdos e falhas no gerenciamento da pandemia, é um alívio ver o resultado a longo-prazo da cultura de imunização na sociedade brasileira. A felicidade do brasileiro em se vacinar, a ansiedade pela imunização e a crença na vacina, ainda bem, vêm superando as poucas (ainda que alarmantes e muito repercutidas) vozes negacionistas do país. Complementando os dados que você já trouxe, deixo aqui mais uma notícia comparando a adesão brasileira à vacina à adesão estadunidense: https://veja.abril.com.br/saude/brasil-completa-7-meses-de-vacinacao-com-taxa-superior-a-dos-eua/ .

bianca de Oliveira
2 anos atrás

Achei muito interessante a relação que o artigo apresenta entre a abordagem da campanha de vacinação, cultura brasileira e os resultados nos índices de imunizados do país. De acordo com o G1, o país alcançou recentemente (09/10) a marca de 46% da população com vacinação completa. Uma das grandes preocupações dos especialistas era a adesão da população à segunda dose. Já em estágio avançado da campanha, o que se observa no país são divergentes aderências à segunda dose em diferentes estados brasileiros. Por exemplo, em São Paulo 60% da população está totalmente imunizada diante de 79% com primeira dose. Em contraste, no Amapá apenas 25% da população está com vacinação completa, enquanto 53% possui apenas a primeira dose. Abaixo, disponibilizo o acesso a matéria do G1 com os dados comparativos entre Estados: https://g1.globo.com/saude/coronavirus/vacinas/noticia/2021/10/09/vacinacao-contra-a-covid-mais-de-70percent-da-populacao-tomou-a-1a-dose-4633percent-esta-totalmente-imunizada.ghtml