Para um yanomami, enterrar um corpo é o equivalente ao horror gerado pelo ato de deixar um corpo apodrecer em praça pública para os brancos – impensável até mesmo para o tipo mais desumano de indivíduo. Entretanto, é isso o que aconteceu com algumas mães yanomami cujos filhos faleceram por covid-19 e foram enterrados pelo Estado brasileiro, num dos muitos exemplos de atos violentos e desrespeitosos praticados contra a população indígena brasileira.
As e os indígenas habitam o território que hoje chamamos de Brasil há muitos séculos, muitos antes do encontro dos europeus com essas terras. Apesar disso, tem sido exterminada, perseguida e discriminada, tem tido suas terras cerceadas e roubadas, seus direitos violentados, e seus modos de vida, ameaçados. Muito antes da gestão desastrosa da pandemia por parte do governo Bolsonaro e da acusação de crime de etnocídio, sabe-se que essa população é marginalizada em todos os sentidos.
Mas, afinal, qual é a causa dos indígenas?
No centro da prática indígena, está o conceito de Bem Viver, que sustenta as distintas formas de organização social dos povos originários latino-americanos, possuindo reflexos concretos na relação desses povos entre si e com o mundo. O Bem Viver vem do quéchua – “Sumak Kawsay” – e expressa uma noção de reciprocidade entre as pessoas, convivência entre todos os seres e profundo respeito à Natureza.
“O conceito de Bem Viver está na contramão de um modelo de desenvolvimento que considera a terra e a natureza apenas como insumos para a produção de mercadorias de rápido consumo e, mais rápido ainda, descarte. É para sustentar o modelo capitalista que os governos priorizam os mega investimentos, as grandes barragens, a exploração mineral, as monoculturas que degradam o ambiente e envenenam a terra, as águas e todos os seres vivos.”2
Nesse sentido, a luta indígena fala sobre bem mais do que demarcação de terras, englobando uma maneira alternativa à forma hegemônica de habitar o mundo, marcada pelo consumo e descarte exagerados, individualismo, competitividade e num contexto mais global, exploração dos grupos sociais mais marginalizados e dos recursos naturais, gerando uma estrutura social marcada pela desigualdade e adoecimento coletivos.
Para além de uma filosofia, o Bem Viver denota, também, “memória” e “horizonte”: a “memória” representando o resgate e a inspiração nas práticas de seus antepassados, de uma era pré-colonial, e “horizonte” norteando uma alternativa de futuro ao modelo capitalista destruidor sob o qual vivemos. Ailton Krenak, em seu livro, “Ideias para a adiar o fim do mundo” nos compartilha a sua visão sobre esse amanhã, seus anseios e preocupações:
“O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados para integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida. Então, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos. E a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim.”3
Diante da catástrofe ambiental, social, sanitária e econômica e da crise de valores e propósitos que experimentamos hoje coletivamente, que história estamos contando?
Talvez o Bem Viver indígena apareça como uma alternativa capaz de oxigenar nossas ideias e esperanças para a construção de futuros. O avanço do modelo de produção baseado em crescimento e expansão ilimitados e a qualquer custo estão ameaçando nossa própria sobrevivência ao modificar as condições básicas que garantem a vida como conhecemos no planeta. As causas e as cosmovisões indígenas podem propor um modo integrado de habitar o planeta, em que humanos se vêem como parte, também, da Natureza.
Como escrevi em outro artigo para o blog, estamos vivendo um momento de inflexão, em que a humanidade ainda consegue reverter os efeitos das mudanças climáticas, mas apenas se agir imediatamente. O que os geólogos têm chamado de “antropoceno” será, também, a era das pandemias, pois o avanço da destruição dos ecossistemas e o aquecimento do planeta causado pela queima desenfreada de combustíveis fósseis são o ambiente perfeito para a criação de novos vírus, e a conexão global dos transportes proporciona a fluidez necessária para uma pandemia. Não é mais possível pensar em uma “segurança da saúde global”, se não levarmos em conta a pressão sobre o meio ambiente, pois agressões à Natureza, hoje, representam agressões a nós mesmos.
A causa indígena também é nossa, porque diz respeito à defesa da vida. Em tempos de políticas de morte e adoecimento coletivo, afirmar a saúde e a vida não é apenas político, é imprescindível.
Notas:
2 Citação disponível no artigo do Cimi, listado nas referências.
3 Citação disponível na página 12 do livro “Ideias para adiar o fim do mundo”, listado nas referências.
Referências
BARBIÉRI, Luiz Felipe. Entidades apontam ‘genocídio’ de índios por coronavírus; secretário contesta e critica uso da palavra. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/07/15/entidades-apontam-genocidio-de-indios-porcoronavirus-secretario-contesta-e-critica-uso-da-palavra.ghtml. Acesso em: 16 nov. 2021.
BONIN, Iara. O bem viver indígena e o futuro da humanidade. Disponível em: https://cimi.org.br/o-bem-viver-indigena-e-o-futuro-da-humanidade/. Acesso em: 16 nov. 2021.
BRUM, Eliane. Mães Yanomami imploram pelos corpos de seus bebês. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-06-24/maes-yanomami-imploram-pelos-corpos-de-seusbebes.html#?sma=newsletter_brasil_diaria202. Acesso em: 16 nov. 2021.
KRENAK, Airton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
RIBEIRO, Alessandra. Para o antropólogo da UFMG, negligência com indígenas na pandemia é política genocida. Disponível em: https://ufmg.br/comunicacao/noticias/para-antropologo-da-ufmg-negligencia-com-povos-indigenas-na-pandemia-e-politica-de-genocida. Acesso em: 16 nov. 2021.
VENTURA, Deisy. The catastrophic Brazilian response to covid-19 may amount to a crime against humanity. Disponível em: https://blogs.bmj.com/bmj/2021/04/05/the-catastrophic-brazilian-response-to-covid-19-may-a
mount-to-a-crime-against-humanity/. Acesso em: 16 nov. 2021.