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Pandemia crônica, de Sonia de Castilho

20 outubro 2021

Pandemia crônica, de Sonia de Castilho

“As Doenças Crônicas Não Transmissíveis são uma ameaça ao desenvolvimento.” A frase foi dita em 2010 pelo então secretário-geral da ONU Ban Ki-moon diante da assembleia geral da entidade. Mas, passados mais de dez anos, as doenças crônicas – doenças isquêmicas do coração, cerebrovasculares, diabetes, câncer, por exemplo – só fazem aumentar e atingem indivíduos cada vez mais jovens, em idade produtiva. São mais de 40 milhões de mortes todos os anos, das quais 15 milhões entre 30 e 69 anos – 85% em países de baixa e média renda.

Mesmo com a pandemia de Covid-19, as DCNTs continuam entre as principais causas de mortalidade. Mais: representam forte fator de risco para o desenvolvimento de formas graves da infecção pelo coronavírus, com alto índice de desfechos negativos. Estudo publicado na revista The Lancet Global Health no ano passado estimou que 22% dos indivíduos em todo o mundo têm risco aumentado de Covid-19 grave se infectado, como resultado principalmente de comorbidades (Clark et al, 2020).

Tomando como exemplo o diabetes – minha área de estudo e interesse: no Brasil, o Boletim Epidemiológico Especial do Ministério da Saúde, que contempla os dados da Covid-19 até 02 de outubro de 2021, coloca o diabetes presente em mais de 30% das mortes registradas. Estudo realizado pela CAPESESP (Caixa de Previdência e Assistência aos Servidores da Fundação Nacional de Saúde), entre março e dezembro de 2020, mostrou 57% mais óbitos pela Covid-19 entre os pacientes com diabetes. Nos Estados Unidos, o diabetes está presente em 40% das pessoas mortas pelo coronavírus.

Segundo estimativa de 2019 da IDF (International Diabetes Federation), existem 463 milhões de pessoas no mundo convivendo com o diabetes (1 em cada 11 adultos), número que triplicou nos últimos 20 anos. Até 2045, espera-se que a prevalência aumente em média 51%, sendo que o continente africano deve amargar uma elevação de 143% no número de casos da doença.

Nos últimos 20 anos, é certo que muita coisa melhorou no tratamento do diabetes. Mas não as desigualdades. Como a maioria das doenças, o diabetes atinge a todos, mas não têm uma distribuição democrática. No Brasil, 5º país do mundo em número de pessoas com diabetes, a prevalência da doença é maior (15,2%) entre os indivíduos com até 8 anos de escolaridade (Vigitel, 2020).

Piores são as evidentes dificuldades no acesso a medicamentos, insumos e cuidados necessários ao bom controle da glicemia. E assim 77% dos quase 17 milhões de brasileiros diagnosticados com diabetes não aderem ao tratamento (Faria et al, 2014). As populações de ambientes de baixa renda em todo o mundo são as que mais sofrem com a falta de disponibilidade de tratamento. Na África, 86% das pessoas com diabetes tipo 2 não têm acesso à insulina de que precisam. O subdiagnóstico também é frequente e global, mas nos países de baixa renda chega a quase 67%.

A pandemia de Covid-19 veio piorar esse quadro. Para atender às emergências e urgências geradas pelo coronavírus, boa parte dos recursos destinados às DCNTs foram redirecionados. Estudo da OMS revela que 75% dos países relataram interrupções significativas nos serviços de cuidado das doenças crônicas após o início da pandemia e 94% dos países relocaram funcionários que cuidavam de DCNTs para funções relacionadas à Covid-19. Os tratamentos para hipertensão e diabetes foram interrompidos em metade de todos os países.

A pandemia também trouxe isolamento, “quarentena”, o que se refletiu no estilo de vida das pessoas. O autocuidado foi negligenciado, com consequências negativas para aqueles com doenças crônicas. Piora na alimentação, maior consumo de bebida alcoólica, menor tempo de atividade física, redução das consultas e exames. É o que mostra a pesquisa O Impacto da covid-19 nas pessoas com diabetes no Brasil, conduzida por um grupo de instituições nacionais e internacionais lideradas pelo Fórum DCNTs (Fórum Intersetorial para Combate às DCNTs no Brasil)Os resultados: 29,81% admitem que passaram a comer mais no isolamento e um alarmante contingente de 59,5% dos entrevistados disseram ter reduzido parcial ou totalmente a prática de atividade física. Mais: 38,4% dos entrevistados adiaram as consultas médicas e/ou exames de rotina e 40,2% nem chegaram a marcar novas consultas desde que a pandemia começou.

Ainda não é possível mensurar o efeito de todo esse quadro sobre a saúde global. Mas mesmo os mais otimistas admitem que nos próximos anos haverá uma explosão nas doenças crônicas e suas consequências. E com o aumento na prevalência e descontrole das DCNTs, os indivíduos estarão menos saudáveis e, portanto, menos preparados para enfrentar futuras emergências globais de saúde.

Referências

Barone, MTU et al. The impact of COVID-19 on people with diabetes in Brazil. Diabetes Research and Clinical Practice, 2020.

Brasil. Ministério da Saúde. Boletim Epidemiológico Especial: Doença pelo Coronavírus – COVID-19 – 83. Outubro 2021. https://www.gov.br/saude/pt-br/media/pdf/2021/outubro/11/boletim_epidemiologico_covid_83.pdf

EBC (Empresa Brasil de Comunicação). Mortalidade pela covid-19 é 57% maior em pacientes com diabetes. https://radios.ebc.com.br/tarde-nacional/2021/04/mortalidade-por-covid-19-e-57-maior-em-pacientes-com-diabetes

Clark A et al. Global, regional, and national estimates of the population at increased risk of severe COVID-19 due to underlying health conditions in 2020: a modelling study. The Lancet – Global Health. Vol 8 August 2020. https://doi.org/10.1016/S2214-109X(20)30264-3

Faria HTG et al. Adesão ao tratamento em diabetes mellitus em unidades da Estratégia Saúde da Família. Revista da Escola de Enfermagem da USP. 2014;2:257-263.

Malta DC et al. Doenças crônicas não transmissíveis e mudanças nos estilos de vida durante a pandemia de COVID-19 no Brasil. REV BRAS EPIDEMIOL 2021; 24:

UPI. Study: Two in five people in U.S. who died of COVID-19 had diabetes. https://www.upi.com/Health_News/2021/07/15/diabetes-high-risk-condition-death/2781626314320/.

Vigitel Brasil 2020: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico: estimativas sobre frequência e distribuição sociodemográfica de fatores de risco e proteção para doenças crônicas nas capitais dos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal em 2020 . Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Análise em Saúde e Vigilância de Doenças não Transmissíveis. Brasília: Ministério da Saúde, 2021.

World Health Organization. The impact of the COVID-19 pandemic on noncommunicable disease resources and services: results of a rapid assessment. Geneva: World Health Organization; 2020.

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