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Os perigos da ciência e a falsa neutralidade, de Alexandre Gomes Gonçalves de Oliveira

18 novembro 2021

Os perigos da ciência e a falsa neutralidade, de Alexandre Gomes Gonçalves de Oliveira

Ao longo das sessões da Comissão Parlamentar de Inquérito que investigou as omissões e irregularidades no tratamento do Governo Federal diante da COVID-19, foi frequente um debate entre senadores, profissionais da saúde e executivos de empresas a respeito do embate entre o “negacionismo” de um lado e o argumento científico “irrefutável” de outro. Durante a CPI, foi comum vermos os senadores Omar Aziz e Randolfe Rodrigues tentarem encerrar uma discussão com a defesa de que certo argumento era cientificamente comprovado, e, portanto, era “neutro” e não deveria ser alvo de especulação e discussão em torno. Sabemos que a ciência – se é que ainda podemos colocar as inúmeras formas de conhecimento, pesquisa e teorias sociais dentro de uma só coisa e chamá-la assim – foi a principal responsável pelo caminho que estamos em direção, que é o fim da pandemia. Foi repetido constantemente que o uso de máscaras, o distanciamento social e a produção de vacinas teriam – e tiveram – importância crucial para o combate da pandemia e a diminuição de casos e das taxas de morte ao redor do mundo. Dessa forma, devemos valorizar e incentivar a pesquisa científica e o pensamento empírico a todo o custo, e o lado oposto da moeda é muitas vezes obscuro e perigoso. Ainda assim, o discurso que foi inflamado nesses tempos, que é o da valorização irredutível da ciência, também têm um espaço reservado de obscuridade e de pensamentos que, historicamente, serviram “cegamente” ao capitalismo, ao racismo científico, às teorias eugenistas e higienistas de raças e ao darwinismo social, tendo se desenvolvido para diversos campos da ciência de mais alto prestígio da época.

                No início do século XX, o mundo ainda assistia à euforia do desenvolvimento do pensamento científico, que tinha como obra simbólica mais importante a Origem das Espécies de Charles Darwin (1859). Não demorou quase nada para que a noção de evolucionismo das espécies fosse reescrita e modificada para diversas áreas do conhecimento. Teorias bem conceituadas no início do século XX a respeito da Saúde Pública continham o pensamento de que certas doenças e pestes atingiam populações mais pobres e de determinadas raças devido às suas pré-disposições genéticas e DNA menos preparado evolutivamente [1]. Na Antropologia, muito da produção científica que precedeu Franz Boas, com referência por exemplo em Lewis H Morgan, consentia na ideia de que existia um caminho evolutivo das sociedades humanas a ser trilhado, sendo as tribos e populações nativas estando em estágios “primitivos” dessa evolução. No direito, o pensamento de Cesare Lombroso era um dos que tinha bastante força, o qual abordava a criminologia a partir não mais do crime, mas dando ênfase ao criminoso – seu caminho, porém, foi o de defender de que o criminoso muitas vezes sofria de uma regressão hereditária que o aproximava de estágios primitivos da evolução. No Brasil, Raimundo Nina Rodrigues inspirou-se em sua obra para desenvolver pesquisas que afirmariam que negros e “mulatos” possuíam capacidade mental incompleta e que isso tinha impacto nos crimes cometidos [2].

                No início do século XX, também, a Escola de Frankfurt representou umas das mais importantes críticas à ciência tecnocrata e instrumentalizada do capitalismo, produzida sem referências das ciências humanas e que se escondia atrás de uma falsa neutralidade. Tendo visto o surgimento e estabelecimento do nazismo de frente, Walter Benjamin, Adorno e Horkheimer foram alguns dos que notaram o pensamento científico que acompanhava esse fenômeno e o legitimava. Daí, por exemplo, a importância que tinha para Horkheimer reconhecer que a produção da ciência não era algo neutro, e sim que o pensamento científico chamado por ele de “Teoria Tradicional” sempre era acompanhado de uma ideologia – para Horkheimer, a produção científica só poderia ocorrer com uma compreensão e conexão com os processos sociais reais [3].

                Algumas décadas depois, Foucault também se empenharia em trazer sua crítica à ciência tradicional, seja através da História da Loucura ou da Sexualidade. Para ele, era nítida a instrumentalização dessa forma de saber pelo Estado e pelas formas que se estendia a influência do capitalismo. As diversas formas de relação entre poder e discursos perpassam o campo da ciência como agente legitimador dentro da lógica disciplinar que existe na sociedade do Biopoder. Para Foucault: “Em nome de uma urgência biológica e histórica, [a ciência que predominou por três séculos] justificava os racismos oficiais, então iminentes. E os fundamentava como ‘verdade’” (p. 60) [4].

                Influenciado por Foucault, Paul B. Preciado [5] também desenvolve uma longa crítica à instrumentalização da ciência e das possíveis consequências que podem ser observadas na sociedade contemporânea. Para ele, vivemos atualmente num regime pós-industrial que pode ser denominado como “farmacopornográfico”, caracterizado, portanto, pela influência da indústria farmacêutica do ponto de vista biomolecular e pornográfica do ponto de vista semiótico-técnico. Impactando diretamente a psicologia, endocrinologia e sexologia, esse regime tem como agente fundamental o papel hegemônico que a ciência tem e que exerce cada vez mais. Dessa forma, observa uma maneira nova em que o discurso científico é instrumentalizado e utilizado atualmente, de maneira que se envolve nas noções psíquicas, sexuais e indenitárias. Para Paul B Preciado: “Se a ciência alcançou o lugar hegemônico como discurso e prática na nossa cultura, isso se deve, como notaram Ian Hacking, Steve Woolgar e Bruno Latour, a seu funcionamento como aparato discursivo-material da produção físico-corpórea. A Tecnociência estabeleceu sua autoridade material transformando os conceitos de psiquismo, libido, consciência, feminilidade, masculinidade, heterossexualidade, intersexualidade e transexualidade em realidades tangíveis, que se manifestam em substâncias químicas e moléculas comercializáveis em corpos, em biótipos humanos, em bens tecnológicos geridos pelas multinacionais farmacêuticasO sucesso da indústria tecnocientífica contemporânea consiste em transformar nossa depressão em Prozac, nossa masculinidade em testosterona, nossa ereção em Viagra, nossa fertilidade ou esterilidade em Pílula, nossa AIDS em Triterapia, sem que seja possível saber quem veio primeiro. ” (Pág. 37)

Se em algum momento do passado (em alguns casos, há poucas décadas) a ciência foi utilizada para legitimar a colonização de continentes com populações “primitivas” e de “raças inferiores” – (processo ligado diretamente a expansão do capitalismo industrial), hoje a ciência é instrumentalizada também pela indústria farmacêutica na lógica biomolecular e tecnocientífica. O positivismo Comtiano foi inevitavelmente bem difundido na sociedade e, muitas vezes, usado como “crença” científica para legitimar os mais diferentes interesses políticos. Persistindo até hoje, uma das lugares que o movimento “ultra científico” se encontra, por exemplo, é no chamado neopositivismo, que, defendendo apenas o concreto, empírico e verificável, não se preocupa com “abstrações” e definem as ciências humanas, como História, Antropologia, Sociologia e Geografia, como “pseudociências” [6]. Em tempos de terra plana e vacina que transforma em jacaré, devemos combater com firmeza o negacionismo ingênuo ou o negacionismo produzido com intenção político-discursiva. Porém, o caminho contrário, de tentar estabelecer uma sociedade radicalmente técnico-científica baseada apenas no empirismo e no material concreto, tem inúmeros exemplos no passado de que não é o melhor a ser trilhado.

Referências:

1 – Miskolci, Richard – Resenha de A Hora da Eugenia: Raça, Gênero e Nação na América Latina. Departamento de Ciências Sociais, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos. Disponível em: https://www.scielosp.org/article/csp/2006.v22n1/231-233/

2 – Wikipédia. Cesare Lombroso. Disponível em:https://pt.wikipedia.org/wiki/Cesare_Lombroso  

3 – HORKHEIMER, Max. Teoria Tradicional e Teoria Crítica. Em BENJAMIN, W.; HORKHEIMER, M.; ADORNO, T.; HABERMAS, J. Textos escolhidos (Col. Os Pensadores, Vol. XLVIII).

4 – FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade – Vol 1: A Vontade de Saber – Paz e Terra – 11ª Edição. 2021

5 – PRECIADO, B Paul. Testo Junkie: Sexo Drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. n-1 edições. 2018

6 – Wikipédia: Positivismo lógico. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Positivismo_l%C3%B3gico

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