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O Som do Silêncio e a discussão sobre implantes cocleares a partir do surdo, de Victor Ferreira Caruzzo

16 novembro 2021

O Som do Silêncio e a discussão sobre implantes cocleares a partir do surdo, de Victor Ferreira Caruzzo

“Todos aqui compartilham da crença de que ser surdo não é uma deficiência, algo pra se consertar.” – Joe (Paul Raci) em O Som do Silêncio (2019)

A sociedade como um todo ainda enfrenta grandes dificuldades em entender a comunidade surda como tal, é comum que se olhe para a surdez como um “defeito” que precisa ser arrumado. É com supostamente boas intenções que médicos ao longo dos anos vêm desenvolvendo métodos cada vez mais sofisticados de mitigar os efeitos da surdez e até, em alguns casos, combate-la. Contudo, no fim, é necessário se perguntar: a comunidade surda realmente deseja isso?

É dessa discussão que trata o filme O Som do Silêncio, no qual o protagonista Ruben Stone (Riz Ahmed) é obrigado a interromper sua carreira musical devido a uma súbita perda de audição. O baterista enfrenta as dificuldades psicossociais da surdez enquanto aprende a se entender dentro da comunidade ao se juntar a um centro de reabilitação para pessoas surdas, chefiado pelo personagem Joe. Nesse lugar, o personagem de Riz Ahmed se depara com um grupo que, de forma geral, tem uma postura otimista quanto à surdez, a enxergam como algo positivo, algo com que ele tem dificuldade de lidar.

 Ao longo de todo o filme, Ruben aprende a lidar com a surdez desde um ponto de vista mais prático, ao aprender uma nova língua, como também imerge na cultura e descobre a imensidão da comunidade surda. Contudo, ainda que nos seja apresentado um arco clássico de superação, o protagonista convive constantemente com a resistência à sua nova realidade, e vê a surdez como algo que pode ser passageiro. Diferente de seus companheiros, ele não consegue encarar sua condição com um viés positivo, e tem como objetivo final realizar uma cirurgia de implante coclear em uma tentativa desesperada de voltar a como sua vida era antes.

É mais ao fim do filme que, em uma resolução abrupta, ele decide abrir mão de tudo e fazer a operação, e é neste momento que a história da uma guinada em um tom mais crítico e sombrio, Ruben não consegue se sentir o mesmo após os implantes, nem tampouco consegue resgatar sua vida. Pelo contrário, ao voltar para o centro de reabilitação, Joe expressa um profundo desapontamento, e pede para que o ex-baterista se retire da casa antes que seus colegas o pudessem encontrar. O ponto principal aqui é que, a tentativa de se livrar desesperadamente da surdez representava algo que, não só aquele grupo local rejeita, mas a comunidade surda como um todo: a negação de sua suficiência como grupo social.

Como dito inicialmente, é ainda difícil para a população surda ser enxergada como um grupo social unificado. A visão individualista de deficiência, colocando o surdo como alguém que está uma prateleira abaixo em um recorte social que pertence, reduz a riqueza de sua história como unidade e desconsidera todo o processo histórico de conquista de um conjunto, além de fundamentar-se, essencialmente, em argumentos de base eugenista que entendem determinado modelo de corpo humano como o “modelo ideal” (SPARROW, 2005).

Sua comunidade, como qualquer outra, é descrita por relações sociais únicas, e possui seu próprio retrospecto de histórias e luta por reconhecimento. Possuem língua própria de surgimento natural, cujo entendimento como idioma oficial vem sendo uma batalha travada por décadas, e já é, em diversas partes do mundo, acatada como forma legal de comunicação. Dispõem também cultura própria, que varia conforme fatores de local e época, mas são, invariavelmente, delimitadas pelas experiências destas pessoas, que interagem ao longo do tempo entre si em determinado local. Possuem visões de mundo próprias e especificidades que caracterizam, inquestionavelmente, sua construção como sociedade (LICHTIG, 2003). É a partir disto que se deve aprofundar o questionamento, a quem beneficia a tentativa incessante de apagar o que caracteriza este grupo como tal?

É tendo isso em mente que eclode a discussão acerca dos implantes cocleares e a “cura” para a surdez, objetos do filme. Uma parcela significativa da comunidade surda global entende que combater a surdez pode ser entendido como genocídio, visto que seu resultado é a redução de um povo e de sua cultura (LICHTIG, 2003). Sob o ponto de vista ético, seu uso durante a infância, que é bastante frequente, é controverso ao conceder aos pais o poder de decidir qual cultura seu filho deverá seguir, o submetendo a uma operação invasiva e determinante por toda a vida, muitas vezes colocando a criança em um limbo cultural, um meio termo em que não faz parte de nenhum dos “dois mundos”. O foco em adaptar os surdos ao mundo e não o contrário também criaria uma condição de mudança necessária, em que não haveria substância para que houvesse a escolha de permanecer em uma comunidade que se tornaria cada vez mais isolada. Ademais, a continuidade do desenvolvimento deste tipo de tecnologia pode acentuar ainda mais as desigualdades sociais, já que são custosas e pouco acessíveis (SPARROW, 2005).

Por fim, é importante ressaltar que este texto não se propõe a tomar partidos na discussão tendo em vista que eu, como autor, não acredito possuir conhecimento suficiente para formular uma opinião. É em função disso que se torna necessário fazer o que é o objetivo aqui: trazer para a luz essa discussão que por muitas vezes é menosprezada, especialmente sob o ponto de vista do “oprimido”, que é sobre quem se tomam as ações.

Referências:

LICHTIG, Ida et al. O implante coclear e a comunidade surda: desafio ou solução? Disponível em: <https://www.researchgate.net/profile/Felipe-Barbosa-6/publication/267831344_O_IMPLANTE_COCLEAR_E_A_COMUNIDADE_SURDA_DESAFIO_OU_SOLUCAO/links/54ffbc1c0cf2741b69f9724e/O-IMPLANTE-COCLEAR-E-A-COMUNIDADE-SURDA-DESAFIO-OU-SOLUCAO.pdf>

SPARROW, Robert. Defending Deaf Culture : The Case of Choclear Implants. Monash University. Disponível em: <https://researchmgt.monash.edu/ws/portalfiles/portal/252777366/3227796_oa.pdf>

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Pedro Vitor
2 anos atrás

Ligação reveladora com cultura e sociedade, baseando-se em um filme e se aprofundando no recorte que este faz de um grupo específico. Tampouco eu detenho conhecimento suficiente sobre esta comunidade, menos ainda sobre implantes cocleares, mas através do seu post consegui agregar muito ao meu conhecimento pessoal. Reflito sobre a questão educacional do país, visto que temos inglês como língua obrigatória em escolas, e muitas agregam o espanhol, ambas são de extrema relevância para a formação profissional dos alunos, mas poucas (isto é, se alguma) institui a Libras (Língua Brasileira de Sinais) como matéria obrigatória, já que esta é uma língua oficial do país e muito importante para esta comunidade.

Marina Galesso Faustino
2 anos atrás

Victor, incrível a discussão que você trouxe para cá! Também vi o filme (na tentativa de maratona para o Oscar) e me surpreendi com o quão pouco eu tinha ideia de como a comunidade surda tem diferentes pontos de vista. Acompanhar o Ruben nessa trajetória, principalmente sendo ele alguém que não nasceu assim e teve toda a resistência para se adaptar à nova realidade, foi muito curioso, sobretudo com a produção maravilhosa do som no filme, que o torna bem imersivo na medida do possível. Sobre o seu texto, achei muito interessante a interpretação de genocídio quanto às tentativas de erradicar a surdez através dos tratamentos e implantes; durante o filme percebemos esse incômodo em relação à intervenção daqueles com audição plena, mas quando colocado assim em palavras a situação ganha ainda mais força.
Me lembrei da discussão que temos nas redes sobre a linguagem neutra, e como algumas pessoas que são contra essa inclusão utilizam por vezes do discurso de que pessoas cegas que usam assistente de leitura ou surdos que se comunicam através de LIBRAS seriam negativamente afetadas. No entanto, como pontuam pessoas que conhecem bem a língua, por exemplo, LIBRAS não dá gênero a muitas dessas palavras que teriam a flexão neutra aplicada, ou seja, não só há um desconhecimento geral sobre a língua e uma tentativa de apropriar questão desses grupos por outros interesses, como também existe o apagamento do seu modo de se comunicar.
Uma discussão riquíssima é a maneira pela qual a língua e sua estrutura molda a forma de enxergar o mundo de seus falantes e, embora eu já tivesse tido contato com isso em relação às línguas faladas e os milhares de exemplos de palavras para cores e sentimentos que são únicos a algumas línguas, nunca havia parado para pensar na forma que essas linguagens não verbais também têm esse papel. Obrigada por trazer isso para cá e parabéns pelo texto!

Mariana Rosa Santos
2 anos atrás

Excelente texto, Victor! Lendo me peguei pensando na importância de boas representações nas produções audiovisuais. Embora tenha havido progresso, ainda é difícil encontrá-las. Quando falamos sobre pessoas com deficiência, me recordo do filme “Como Eu Era Antes de Você” que suscitou um grande debate e diversas críticas justamente por implicar que a vida do protagonista, um homem que ficou tetraplégico após sofrer um acidente, não valeria a pena ser vivida. Como você apontou, esse é argumento de base eugenista, que resgata até mesmo uma lógica utilizada pelos nazistas nos campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial e mesmo pelos gregos que matavam as crianças que nasciam com alguma deficiência na Antiguidade Clássica. Infelizmente, esse é um discurso ainda muito recorrente na sociedade. Por isso, são de extrema importância personagens como Milena da novela Malhação (2019), Isaac da série Sex Education e Toph da animação Avatar: A Lenda de Aang. Esses são exemplos que, além de não colocarem a deficiência como um fardo ou algo que diminui o valor da pessoa, não são casos em que todo o arco da personagem gira em torno desse aspecto e abre espaço para personagens mais complexos – e completos. 

Além disso, ainda há uma discussão importantíssima que você levantou sobre o acesso de pessoas surdas aos implantes cocleares, reflexão que pode ser estendida para tantos outros tipos de deficiência. Confesso que não havia pensado nesse aspecto, mas é uma conversa essencial, principalmente em países como o Brasil, onde os níveis de desigualdade e de acesso a diversos itens são tão baixos.