Os Estados Unidos, desde a década de 1960, financiaram e ajudaram a estruturar os serviços de planejamento familiar em uma série de países em desenvolvimento. Maior fonte de financiamento na área da saúde global, os EUA contribuem para a existência e a atuação de agências de saúde alocadas na África, Ásia e América Latina. As ONGs são de extrema importância para a prevenção e o tratamento de doenças, a disseminação de conhecimento e a promoção do direito à saúde onde os recursos são escassos. Apesar do protagonismo dos EUA no progresso de programas de saúde e de planejamento familiar a nível global, a Política da Cidade do México, conhecida como Lei da Mordaça Global (Global Gag Rule), ameaça a estabilidade e a previsibilidade da ação de organizações que oferecem serviços de saúde. Adotada por governos republicanos desde a década de 1980, a Global Gag Rule (GGR) impõe obstáculos à plena realização dos direitos sexuais e reprodutivos femininos nos países que recebem assistência financeira norte-americana e impacta negativamente os indicadores de bem-estar.
A Lei da Mordaça Global é uma política governamental dos EUA que impede o financiamento federal de ONGs que “realizam ou promovem ativamente o aborto como método de planejamento familiar”. A Política da Cidade do México foi implementada pela primeira vez em 1985, durante o segundo mandato do presidente Reagan. No início do governo Clinton (Partido Democrata), em 1993, a GGR foi rescindida. O Partido Republicano voltou ao poder em 2002 sob o comando de Bush e a lei foi restabelecida. O presidente Obama anulou a política mais uma vez até que, em 2017, Trump ressuscitou e expandiu significativamente a regra. Sob a denominação “Protecting Life in Global Health Assistance”, a restrição imposta por Trump determinou que mesmo as organizações que utilizam recursos próprios para procedimentos relacionados ao aborto perderiam o subsídio dos EUA.¹ A versão de Trump abrange todas as agências de saúde que recebem assistência norte-americana, independentemente de sua área de atuação. O atual presidente, Joe Biden, suprimiu a política no primeiro mês de mandato e defendeu a proteção da saúde das mulheres, nacional e internacionalmente.² Os danos da GGR, no entanto, persistem.
Carregada de questões morais contra o aborto, a Política da Cidade do México enfraquece a saúde pública e viola direitos humanos. As agências de saúde encaram uma escolha difícil: aceitar o financiamento dos EUA e negligenciar os direitos reprodutivos ou rejeitar o subsídio e comprometer recursos cruciais que seriam utilizados em iniciativas associadas a enfermidades como HIV, tuberculose, malária e Zika vírus (Singh et al., 2017)³ e programas de higiene e nutrição. O objetivo declarado dos governantes republicanos é a promoção dos direitos humanos, contudo, ao prejudicar o acesso à saúde, a Lei da Mordaça é incompatível com os direitos fundamentais e a ética na saúde global (Bochego e Upreti, 2006).4 A lei também representa um entrave à liberdade de expressão, visto que dificulta a obtenção de informações objetivas sobre a saúde e os direitos reprodutivos femininos.
A Organização Mundial da Saúde (OMS)5 afirma que 45% de todos os abortos são inseguros e a maioria ocorre nos países em desenvolvimento; todo ano, o número de gestações indesejadas ultrapassa 120 milhões — e 6 a cada 10 terminam em aborto; entre 4.7% e 13.2% das mortes durante a gravidez são atribuídas ao aborto inseguro. A fim de compreender as repercussões da GGR, um estudo divulgado pela Universidade Stanford6 analisou o uso de contraceptivos modernos, a taxa de gravidez e a ocorrência de abortos em 26 países da África Subsaariana e comparou os dados dos períodos em que a política teve efeito (2001-2008) e dos anos em que foi rescindida (1995-2000 e 2009-2014). Os países africanos foram divididos de acordo com o grau de exposição à Lei da Mordaça, ou seja, o quanto dependem de recursos norte-americanos para os seus respectivos programas de planejamento familiar. Os resultados demonstram que, quando a Política da Cidade do México está em vigor, os países mais expostos à regra sofrem aumento de aproximadamente 40% na ocorrência de aborto, redução do uso de métodos contraceptivos e crescimento da taxa de gravidez em comparação aos países menos expostos à Lei da Mordaça e aos períodos em que a política foi anulada.
Os dados sobre os impactos da dramática expansão da GGR durante o governo Trump estão incompletos, entretanto, alguns resultados são percebidos em diversos países, conforme relatório publicado pela CHANGE7, que advoga para proteger direitos reprodutivos. Organizações como Reproductive Health Network Kenya (RHNK), Family Planning Association of Malawi (FPAM) e Mozambican Association for Family Development (AMODEFA), que oferecem serviços e treinamentos de saúde, precisaram reduzir equipes de trabalho, descontinuar iniciativas e interromper tratamento e campanhas de prevenção de doenças. A AMODEFA encerrou as atividades de 50% de suas clínicas que prestam atendimento para a população jovem, reduziu 30% da equipe e perdeu 500 trabalhadores comunitários comprometidos com a prevenção do HIV. Países como Quênia e Madagascar observaram o crescimento da taxa de gravidez na adolescência e uma das causas é o declínio do acesso a contraceptivos, especialmente nas áreas rurais. A confusão sobre a implementação e a conformidade das ONGs com a política prejudicou o estabelecimento de parcerias entre agências de saúde e os esforços para o avanço de leis com o objetivo de aperfeiçoar os direitos sexuais e a saúde reprodutiva. O discurso pró-vida e o estigma sobre o aborto aumentaram globalmente, inclusive nos países onde a interrupção da gestação é permitida por lei, segundo a International Women’s Health Coalition.8
A Política da Cidade do México pode levar ao aumento da ocorrência de aborto e potencialmente ampliar os riscos para a saúde física e mental das mulheres, que em muitos casos buscam meios alternativos e realizam a interrupção da gravidez em condições precárias e insalúbres. A Lei da Mordaça implica em dificuldade de acesso a métodos contraceptivos, serviços de saúde e conhecimento sobre autocuidado. O estabelecimento da Global Gag Rule a cada mandato presidencial do Partido Republicano compromete o avanço dos direitos femininos e contribui para a instabilidade dos direitos sexuais e reprodutivos nos países que mais dependem de assistência financeira para a efetiva promoção da saúde. A regra, que seria inconstitucional no sistema político-jurídico dos EUA, é contrária a uma abordagem de direitos humanos da saúde pública, que foca nas necessidades de grupos vulneráveis e garante que recebam um atendimento médico humanizado.
Referências:
¹Em resposta a Trump, campanha arrecada fundos para grupos pró-aborto
²White House: Memorandum on Protecting Women’s Health at Home and Abroad (Janeiro de 2021)
³Jerome A. Singh, Salim S. Abdool Karim. Trump’s “global gag rule”: implications for human rights and global health. The Lancet, vol. 5, 2017.
4Dina Bogecho, Melissa Upreti. The Global Gag Rule: An Antithesis to the Rights-Based Approach. Health and Human Rights 9, no 1, 17–32, 2006.
5World Health Organization – Health Topics: Abortion
6Eran Bendavid, Patrick Avila, and Grant Miller, Stanford University, United States aid policy and induced abortion in sub-Saharan Africa. The Lancet, vol. 7, 2019. Disponível em: USA aid policy and induced abortion in sub-Saharan Africa: an analysis of the Mexico City Policy
7CHANGE: Trump’s Global Gag Rule (Março de 2021)8International Women’s Health Coalition: CRISIS IN CARE – Year Two of Trump’s Global Gag Rule (2019)