“A saúde, local e globalmente, está relacionada à organização da atividade política e econômica, às estruturas, às relações sociais, à distribuição de poder e ao controle sobre a riqueza e os recursos.” (Traduzido de Textbook of Global Health, 2017)
A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu a pandemia de COVID-19 em março de 2020 e recomendou o isolamento social para conter a propagação do novo coronavírus. O diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, afirmou que os governos deveriam garantir o bem-estar e o acesso da população aos serviços essenciais. Contrariamente, o presidente Jair Bolsonaro inflamou os seus discursos contra as medidas de distanciamento e adotou uma retórica que acenava para a sua base eleitoral e estabelecia um contraste entre proteger a saúde coletiva e assegurar o funcionamento da atividade econômica. Criou-se, então, a ideia de que o estímulo ao isolamento social significaria aceitar grandes perdas econômicas — em seus pronunciamentos, Bolsonaro constantemente se refere à miséria, à fome e ao desemprego como resultados da “tirania do isolamento social” (O Globo, 2020)¹. Afinal, após quase dois anos, é possível afirmar que a resposta à pandemia de COVID-19 está inserida em um trade-off, isto é, um conflito de escolha entre preservar a economia e proteger a saúde da população? O efeito da pandemia nos indicadores econômicos levará tempo para ser integralmente compreendido, contudo, análises preliminares de países em diferentes estágios de desenvolvimento sugerem que os Estados que protegem a saúde da população são bem-sucedidos em mitigar o enfraquecimento da economia (Casey, 2020).²
À medida que a propagação do novo coronavírus acelerou e a paralisação de atividades em grupo se mostrou a melhor alternativa para evitar o contágio, o declínio econômico tornou-se iminente. Aos poucos, alguns governantes entenderam que reduzir o dano à economia decorre do efetivo controle da proliferação do vírus. O Governo Federal brasileiro, por outro lado, se tornou exemplo mundial de condução negligente: o presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores adotaram uma postura negacionista, minimizaram a gravidade do coronavírus e estimularam a disseminação do vírus sob a justificativa de que a população brasileira rapidamente alcançaria a “imunidade de rebanho” pelo contágio (Ventura et al., 2021)³. A gestão de Bolsonaro escolheu o “pandemicídio” por motivos essencialmente eleitorais, a fim de manter a economia funcionando e proteger a popularidade do governo para as próximas eleições. A administração bolsonarista esvaziou os poderes da área técnica do Ministério da Saúde, promoveu boicote às medidas de isolamento adotadas nos estados e municípios e impôs obstáculos à compra de vacinas, o que causou mortes evitáveis. Apesar da capilaridade de um robusto sistema de saúde universal, o Brasil figura entre os países com o maior número de mortes por COVID-19.
A dicotomia “saúde versus economia” imposta por Bolsonaro provou-se insustentável após os primeiros meses da pandemia de SARS-CoV-2. Um relatório divulgado em novembro de 2020 pelo Institute for New Economic Thinking (INT)4 comparou as respostas de diferentes governos à crise sanitária e os dividiu em três grupos: os países que sacrificaram a economia e agiram prontamente para combater o vírus, como China, Taiwan, Coreia do Sul, Nova Zelândia, Finlândia, Indonésia, Alemanha e Japão; os países que optaram por limitar o combate ao coronavírus e criaram programas de estímulo econômico, como Suécia, México, Chile, Estados Unidos, Bélgica e Israel; e os países que responderam relativamente tarde ou escolheram estratégias intermediárias, como Reino Unido, França e Itália. O INT constatou, ao analisar o número de mortes por COVID-19 e o desempenho do PIB, que a piora da pandemia — representada pelo aumento do número de mortes — está relacionada a maiores custos econômicos. O gráfico abaixo mostra o total de mortes por 100.000 habitantes em relação à variação do PIB de 2020 comparado a 2019. Os dados indicam que não há evidências de trade-off: no geral, os governos que protegem a saúde são capazes de resguardar a economia.5
Fontes dos dados: OMS e Banco Mundial.
O cenário que se instaurou não está relacionado à escolha do dano mais aceitável (na economia ou na saúde): o objetivo do Estado deve ser proteger a população para garantir a retomada econômica diante da inevitabilidade da redução do PIB no contexto de emergência sanitária global. A ausência de condições socioeconômicas e de consenso político para a realização do isolamento social em larga escala não significou normalidade do índice de consumo, o que corrobora a ineficácia da estratégia do governo brasileiro focada na imunidade coletiva por contágio com o objetivo de conservar a atividade econômica. A melhor maneira de proteger a economia, portanto, é preservar a saúde da população a longo prazo por meio de medidas de contenção da disseminação do vírus.
Os impactos da pandemia de COVID-19 na economia serão amplamente estudados, entretanto, é possível afirmar que os próximos anos serão marcados por incertezas, sobretudo nos países menos desenvolvidos. O Banco Mundial projetou para 2021 um crescimento econômico de 5.6%, no entanto, a recuperação é desigual, especialmente para as regiões que apresentam as menores taxas de vacinação.6 Os problemas sociais resultantes do declínio da economia fornecem as bases para outras crises sanitárias, o que enfatiza a necessidade de lidar com o contexto social e os fatores estruturais que dificultam ou impedem o acesso aos determinantes sociais da saúde, como educação, renda, água potável, serviços de saúde, habitação e alimentação adequada.
Referências:
¹Bolsonaro volta a criticar isolamento social contra o coronavírus
²Covid-19: Is there a trade-off between economic damage and loss of life?
4To Save the Economy, Save People First – Institute for New Economic Thinking
5Which countries have protected both health and the economy in the pandemic?6Global Economic Prospects
Caramba Anna, muito bom o seu texto. Particularmente eu acho muito difícil discutir ou pensar a temática por um envolvimento muito emocional… então parabéns por conseguir estabelecer um raciocínio centrado e neutro, também com exemplos que mostram que de fato o que vivenciamos aqui foi uma política monstruosa em que fomos abatidos por motivos eleitoreiros.
Fomos levados a crer neste debate de que seria impossível obter as duas coisas (ou minimizá-las), então foi bom ler esse posicionamento. A incerteza ainda é grande, mas já temos algumas conclusões importantes.
Os dados que você trouxe são muito interessantes, Anna. Como foi apontado durante o texto, essa dicotomia “saúde x economia” foi criada por Bolsonaro com intenções claramente eleitorais. É ainda mais revoltante quando lembramos que, ainda no início da pandemia, diversos economistas de escolas diferentes sugeriam medidas similares: isolamento social e intensificação dos gastos públicos.
Ao seguir sua política monstruosa, Bolsonaro não apenas condenou diversas pessoas a exposição contra o vírus, como também prejudicou a já cambaleante economia de nosso país.