O corpo nas emergências de saúde pública, de Mariana Leão Soares Gomes

17 novembro 2021

O corpo nas emergências de saúde pública, de Mariana Leão Soares Gomes

A pandemia de Covid-19 pode ser entendida como um fato social total que nas palavras de Marcel Mauss, “não só exprimem-se, de uma só vez, mas também põem em movimento a totalidade da sociedade e suas mais diversas instituições: religiosas, jurídicas, morais, econômicas, etc..”¹. Esse fenômeno em saúde, assim como as outras emergências em saúde pública de importância internacional declaradas pela OMS, são o exemplo máximo de como nos causam impactos e alteram formas de agir, pensar e de estar no mundo experienciados pelo corpo e que é muitas vezes inviabilizado quando nos referirmos ao campo da saúde global.

Para Mauss, não se pode separar o corpo das dimensões do ser humano ao pontuar como a interdependência entre os domínios físico, psicológico e social do ser humano totalizante². Assim o sociólogo pensa o corpo para além da visão de utilidade mas como ele é um reflexo das representações sociais, ou seja, o corpo é mais que essa substância natural, ele é moldado e constituído pela vida social. Ao compreender o corpo como “matéria prima” e “ferramenta” da cultura, os usos que damos para nossos corpos incorporam toda nossa construção social e individual de acordo com nossas condições de estar no mundo.

Contribui para a discussão o argumento trazido pela antropóloga Silvana Nascimento sobre a posição da antropóloga em campo no qual os corpos presentes em um espaço-entre, em uma existência fronteiriça produzem efeitos distintos sobre maneiras de fazer, pensar e, em tempos pandêmicos, modos de cuidados. Nessa perspectiva podemos trazer diversas produções que contrapõem conhecimentos hegemônicos, nos quais resumem-se a pandemia a fatores biológicos, bem como potencializam e instigam novas relações “capaz de estilhaçar a dualidade sujeito-objeto e cruzar fronteiras geopolíticas, sexuais, sociais, culturais, linguísticas”³.

 Como consequência, apesar das emergências em saúde pública ter representações coletivas, esta não pode se delimitar e ser analisada somente em conjunto/relação com o todo. Há a necessidade de olhar as vivências que esta implica sobre os corpos e sobre as pessoas como produtoras de multiplicidades em seus corpos-fronteiras marcados por vulnerabilidades e invisibilidades nas quais os conceitos de vulnerabilidade estrutural e racialização⁴ contribuem para se colocar em perspectiva tais impasses no campo da saúde global.⁵

Elenca-se como exemplo efetivo em consonância com tais ideias o contexto da emergência do Zika no nordeste brasileiro e a resposta dirigida pelas organizações sociais em conjunto com a UNFPA (Fundo de População das Nações Unidas) que se propuseram diferentes iniciativas comparadas às medidas tomadas pelo governo. Em que a campanha “Mais Direito, menos Zika” direcionou a estratégia a partir da noção de direitos humanos e em constante diálogo com os membros e representantes nas Salas Situação para com grupos em situação de vulnerabilidade naquele contexto e em particular, as mulheres com síndrome congênita do zika vírus. Em contrapartida, ao discurso misógino e prática do combate ao mosquito que se dirigia às mulheres como responsáveis pelo agravo e somente “para manter a casa limpa e para evitar contracepção”.⁵

Entretanto, o que se experienciou na pandemia ocasionada pelo vírus Sars-Cov-2 foram a intensificação das negligências, expondo mais ainda as estruturas de injustiça e desigualdade. Sendo o corpo reiteradamente visto pelos saberes biomédicos de produção eurocêntrica onde dirige-se às intervenções de cuidado tal ideia colocou outras possibilidades e perspectivas numa posição de subalternização e deslegitimidade no caso das populações indígenas seus conhecimentos e especificidades. Camara Phyllis Jones discute em “Confronting institutionalized racism” como opera e impacta o racismo institucionalizado, e no caso das comunidades indígenas engendra-se racismo e colonialismo como eixo principal na produção de desigualdades:

“[…] I have become convinced that it is only by naming racism, asking the question “How is racism operating here?” and then mobilizing with others to actually confront the system and dismantle it that we can have any significant or lasting impacts on the pervasive “racial” health disparities that have plagued this country for centuries.”⁶

Para exemplificar, enquadra-se a dificuldade de assistência para indígenas em centros urbanos, fator este condicionado pelo descaso dos governos e ressaltado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasi⁷ nos balanços oficiais que não contabilizam e não reconhecem essa população como indígena o que acaba por minimizar os efeitos da pandemia nos povos indígenas. A exemplo, vê-se o programa de vacinação prioritário lançado em janeiro deste ano pelo Ministério que reconhece o direito de apenas 413.739  indígenas⁸, enquanto que segundo o censo IBGE (2010)⁹, a população indígena no país era de 896.917, assim excluindo o direito dos que vivem em centros urbanos e da população indígena aldeada em terras não demarcadas nesta política.

“[The Covid-19 pandemic] calls for a decolonised and decentralised global health, one that moves beyond tokenistic box ticking about diversity and inclusion into developing new structures and processes that can address power asymmetries.”¹º

Diante do exposto, urge a necessidade de incorporar os instrumentos dos estudos críticos da saúde global ao passo que sua decolonização ande em conjunto com a produção de epistemologias e questionamentos da própria área da saúde como um todo nas quais ressalta-se a importância das produções locais nas quais colocaram luz a contextos particulares e atravessamentos do corpo-fronteira e sua capacidade de expansão de sentidos bem como se incorpora novas práticas promovendo assim maior alinhamento e coesão entre políticas nacionais e internacionais.

REFERÊNCIAS:

¹ MAUSS, Marcel – “Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas In Sociologia e Antropologia, vol. II. São Paulo: Cosac & Naify, 2003 (“Introdução”, cap. I e “Conclusões” – pg. 185 a 210 e 294 a 314)

² MAUSS, Marcel. “As técnicas do corpo” In: Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003, p. 401 a 422.

³ NASCIMENTO, Silvana. O corpo da antropóloga e os desafios da experiência próxima. Revista de Antropologia, v. 62, n. 2, p. 459 – 484, 17 set. 2019

⁴ BIEHL, João. Descolonizando a saúde planetária. Horizontes Antropológicos [online]. 2021, v. 27, n. 59 [Acessado 15 Novembro 2021] , pp. 337-359. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0104-71832021000100017>. Epub 03 Maio 2021. ISSN 1806-9983. https://doi.org/10.1590/S0104-71832021000100017.

⁵ Viegas, Ventura e Silva (2021). The proposal of an international convention on response to pandemics: in defense of a human rights treaty for the field of global health. 

⁶ JONES, C. P. Confronting institutionalized racism. Phylon, Atlanta v. 50, n. 1, p. 7-22, 2002.

⁷ Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. “Apib recorre ao STF para garantir a vacinação de indígenas”. Disponível em : <https://apiboficial.org/2021/01/29/apib-recorre-ao-stf-para-garantir-vacinacao-de-indigenas/>. Acesso em 15 de novembro de 2021.

⁸ BRASIL. Ministério da Saúde. Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19. Brasília, DF. Janeiro de 2021.

⁹ Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os indígenas no Censo Demográfico 2010 – primeiras considerações com base no quesito cor ou raça Rio de Janeiro: IBGE; 2012.

¹º Abimbola et al. (2021) Addressing power asymmetries in global health: Imperatives in the wake of the COVID-19 pandemic. PLoS Med.18(4):e1003604. Epub 2021/04/23. 

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