Em 1991, a Assembleia Geral acolhe no dogma da Organização das Nações Unidas quatro princípios, considerados fundadores da ação humanitária: a humanidade, a imparcialidade, a neutralidade e a independência. Essa concepção de estrutura básica é desde então tomada como definidora para o humanitarismo e, no entanto, a prática neutra não é a única legítima e nem sempre a mais eficiente. Encontramos em contrapartida uma alternativa razoável, senão às vezes preferível – a ação humanitária ativista.
Partimos da definição concebida pela ONU porque as organizações humanitárias são protagonistas na promoção de ações internacionais do tipo, com escopo desenhado originalmente para ser propositalmente apolítico. Tomam o princípio de neutralidade como espinha dorsal e, no entanto, a pandemia da COVID-19 expõe os problemas estruturais que há muito desafiam a ação humanitária internacional e colocam na mesa as possibilidades que abandonar esse princípio e adotar uma prática humanitária ativista oferece. Como crítica à hipocrisia que por vezes é disfarçada pelo impressão diáfana de neutralidade, destaco para explicar o impacto positivo e a capacidade transformadora do ativismo humanitário três aspectos: a crítica da neutralidade sobre a estrutura, a prática decolonial e o problema do financiamento institucional.
O princípio da neutralidade é ambíguo, e enxergar essa ambiguidade é chave para compreender os limites da ação humanitária neutra e pensá-la sob uma estrutura que é relevante para qualquer avaliação no curto e longo prazo. A ação neutra permite que organizações internacionais ajam através das fronteiras do conflito, atendam demandas dos dois lados e advoguem pelo respeito ao Direito Internacional Humanitário de forma comprovadamente apolítica em um trabalho que oferece alívio imediato a pessoas vítimas de conflitos armados e outras situações de violência, após anos de relações diplomáticas e disposição de recursos financeiros e humanos que comprovem essa posição diante de diferentes contextos políticos ao redor do mundo. Por outro lado, se não mais apoiados no princípio de não envolvimento em embates políticos, a ação humanitária pode ganhar eficiência no longo prazo, questionando os sistemas que perpetuam inequalidades ao redor do globo e comprometendo de forma transformadora as estruturas que mantém inerte a demanda por assistência ao longo do tempo, como acesso à serviços de saúde. O trabalho humanitário neutro é legítimo, mas questionar a origem dos problemas busca sanar pode ser essencial para extrapolar a função do humanitarismo como tampão aos problemas de uma comunidade, compreendendo a forma sofisticada com que os desafios são colocados a um povo e, ao invés de promover a criação de mecanismos de resiliência, sabotar as razões estruturais pelas quais um povo precisa ser resiliente.
Ainda, a ação humanitária ativista compreende impactos positivos como forma de decolonização do humanitarismo, especialmente no âmbito da saúde global. São empregados tempo, recursos e conexões diplomáticas para engajar-se com neutralidade em um conflito da forma que algumas organizações humanitárias pretendem fazer. Aplicar esse mesmo padrão de humanitarismo a todas as organizações exclui muitos atores, especialmente os locais, que podem não dispor desse tipo de discurso diplomático ou dos recursos financeiros para superar as desigualdades criadas pela estrutura de distribuição de riquezas, mas que têm contribuições muito relevantes para incentivar a autonomia das comunidades por meio de um desenvolvimento sustentável, nutrido pelas suas próprias potências.
Logo, passo à discussão sobre o financiamento de organizações humanitárias e sobre as escolhas das áreas de investimento de destino, que devem, sob um olhar crítico, ser tomadas junto das pessoas que recebem o investimento e o transformam em atividades mais eficientes do que o assistencialismo prevê. Se superamos o modelo de financiamento que baseia sua captação de recursos em governos e instituições administradas por países ricos, é possível que organizações internacionais deixem de atuar como empresas e passem a atuar como sociedade civil, ganhando autonomia e coerência nos discursos críticos que deseja elaborar junto de uma ação humanitária ativista. Assim, questionar a fonte de investimento das organizações humanitárias protagonistas no espaço internacional e investigar as raízes do princípio de neutralidade que alega sobreviver a interesses unilaterais, mesmo quando a representação desses interesses poderiam facilmente ser negociados em troca de financiamento, é essencial no processo de reimaginação do humanitarismo e suas possibilidades.
Concluo que a ação humanitária neutra é uma versão do humanitarismo, não a única e não única legítima. Acolher um olhar crítico amplia as possibilidades de uma prática que ainda se compromete com a humanidade, a imparcialidade e a independência em suas práticas, reconhecendo o lugar privilegiado que organizações humanitárias têm na transformação de estruturas que já estão colocadas e já interferem na disposição justa de recursos entre comunidades ao redor do mundo. Da mesma forma, as organizações devem olhar para dentro, questionar em um nível fundamental a eficiência das suas práticas, enxergando de forma realista os avanços feitos e os desafios que persistem, estudando de que forma uma ação humanitária apolítica é eficaz na sua promoção e negligente na manutenção da sua necessidade. É fundamental que pensem na inclusividade que toma parte do desenvolvimento dessa reimaginação do humanitarismo, quem ela privilegia e quais lentes admite ao reconhecer de forma imparcial a propriedade da humanidade em corpos, que contêm em si a potência de uma independência verdadeira, distante da inércia da ajuda humanitária neutra e que parte, revolucionariamente, de uma ação ativista.
Referências:
SLIM, Hugo. You don’t have to be neutral to be a good humanitarian. Disponível em: https://www.thenewhumanitarian.org/opinion/2020/08/27/humanitarian-principles-neutrality
WHITALL, Jonathan. Do oportunismo financeiro à coerência de princípios. Disponível em: https://guiadefontes.msf.org.br/do-oportunismo-financeiro-a-coerencia-de-principios/
The New Humanitarian. West’s humanitarian reckoning. Disponível em: https://www.thenewhumanitarian.org/opinion/2020/07/01/black-lives-matter-aid-power-rethinking-humanitarianism-takeaways
Muito bom texto, Isabela!
Ao se pensar na atuação de organizações humanitárias para construção de uma nova era, considero muito importante considerar o princípio que dá base a ajuda humanitária: a dignidade da pessoa humana. Nos séculos passados, o processo de internacionalização da sacralidade da pessoa humana ocorreu simultaneamente ao imperialismo e colonialismo. Com isso, a ajuda humanitária acabou transformando-se em uma forma de demonstrar a superioridade ocidental perante os povos ajudados. A ação humanitária neutra é muito ligada a essa visão colonial.