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O agro é saúde? Reflexões sobre o sistema agroalimentar, de Marina Sujkowski Lima

6 novembro 2021

O agro é saúde? Reflexões sobre o sistema agroalimentar, de Marina Sujkowski Lima

            “O agro é tech, o agro é pop, o agro é tudo”: todos já nos deparamos com a famosa peça publicitária a respeito do agronegócio – o grande complexo de atividades econômicas conectadas à produção agrícola. De fato, o agronegócio é atualmente um elemento chave do sistema alimentar que adotamos no mundo, e especialmente importante para a economia brasileira. Contudo, é necessário refletir sobre suas implicações sobre diversos aspectos da vida humana, inclusive sobre a saúde. Por óbvio, o setor da agropecuária possui grandes impactos sobre a alimentação da população mundial, a qual já é um componente fundamental se tratando de saúde, mas não se restringe a isso. A forma como a produção agrícola é estruturada acarreta diversas consequências sobre a saúde ambiental, a ocorrência de epidemias e pandemias, as condições sanitárias de populações vulnerabilizadas, e até mesmo a distribuição de renda. Assim, observaremos brevemente alguns desses efeitos do agronegócio sobre a saúde global.

Primeiro, entenderemos como a produção alimentar nos moldes do agronegócio tem profundos efeitos sobre a saúde ambiental. Estima-se que 24% das mortes no mundo têm causas ambientais (OMS, 2018), e o agronegócio, com sua postura extrativista, é um grande responsável por agressões ambientais. As terras onde estão alocadas as monoculturas intensivas irrigadas são as que mais têm o solo degradado e pobre em nutrientes (FAO, 2015).  O agronegócio também é o setor econômico que mais consome água no mundo (BIRN, PILLAY, HOLTZ; 2017). Além da exploração exaustiva da natureza, as grandes corporações agrícolas também são responsáveis por altos níveis de poluição. A contaminação da água por agrotóxicos, pesticidas e outros resíduos agrícolas, por exemplo, pode expor pessoas a toxinas e microrganismos causadores de doenças (FAO, 2018). Uma outra grande preocupação são as mudanças climáticas, que podem afetar desde o acesso à água potável e ao ambiente limpo até a produção de alimentos e a doenças causadas por temperaturas extremas (OMS). O setor agrícola é diretamente responsável por quase 19% das emissões de gases estufas no mundo, descontando os gastos com energia (Our World in Data), estando assim conectado à elevação da temperatura média global, e às consequências sobre a saúde.

Pesquisadores também avaliam a conexão entre as atividades agrícolas intensivas e o surgimento de novas doenças e pandemias. Na obra “Big Farms Make Big Flu”, Rob Wallace destrincha essa relação, apontando que o desmatamento causado por empresas agrícolas faz com que haja desequilíbrios ecológicos na fauna e flora locais, potencializando o contato humano com microorganismos causadores de doenças que até então estavam controlados dentro de seus territórios.  Um dos casos apresentados na obra é o da epidemia de ebola no oeste africano, a qual seria o resultado do desmatamento das florestas e substituição por grandes plantações por uma companhia de óleo de palma, que levou morcegos que carregavam o vírus a entrarem em contato com a população humana. Outras pesquisas apontam: as agressões ambientais como o desmatamento, fortemente conectado à expansão das fronteiras agrícolas, aumentaram em cinco vezes as chances de ocorrência de pandemias (El País).

A relação entre a saúde global e o sistema alimentar adotado no mundo não se restringe a fatores ambientais. Pode-se também avaliar essas práticas agrícolas retomando os determinantes sociais da saúde, principalmente no que diz respeito à estrutura fundiária que determina a distribuição das terras no mundo. Grande parte das terras agricultáveis está concentrada em corporações agrícolas – processo ainda mais intensificado em regiões do Sul global, como a América Latina. Essa concentração das terras por transnacionais empurra pequenos agricultores e trabalhadores rurais para os grandes centros urbanos ou precariza suas condições de trabalho, gerando pobreza e um aprofundamento das desigualdades socioeconômicas. As novas condições sanitárias ocasionadas por esse processo também levam ao aparecimento de doenças, como foi o caso da tuberculose em países latino-americanos (BIRN, PILLAY, HOLTZ; 2017).

Por fim, tem-se o papel do agronegócio no sistema alimentar mundial. Uma alimentação nutritiva é extremamente importante para a garantia da saúde e do bem-estar, mas, apesar da produção agropecuária esteja alcançando níveis recordes, estima-se que a fome atinja atualmente 811 milhões de pessoas no mundo (FAO, 2021). Isso acontece pois o agronegócio prioriza a produção de commodities para exportação e comercialização em vez de alimentos (MAGDOFF, 2012). Isso fica muito evidente no Brasil, em que a enorme produção agrícola é destinada à exportação: em 1988, 24,7% das terras eram destinadas ao cultivo de alimentos da cesta básica brasileira, e em 2018, essa parcela caiu para apenas 8% (MITIDIERO JÚNIOR; GOLDFARB, 2021). Milhões de pessoas não têm recursos financeiros para adquirir alimentos, sendo que o acesso à alimentação se torna fortemente dependente das flutuações econômicas. Assim, em períodos de crise, o preço dos alimentos sobe, junto à fome e insegurança alimentar principalmente de populações de baixa renda e economicamente vulneráveis (FAO, 2021).

Tendo em vista todas as discussões aqui apresentadas, fica evidente a forte relação entre a organização do sistema alimentar no mundo, o setor do agronegócio, e a saúde global. Contudo, o intuito do artigo não é tornar o agro um grande e único vilão da saúde, mas refletir sobre as estruturas sociais e econômicas que permeiam a vida humana atualmente e como elas podem ser determinantes para a garantia (ou não) do bem-estar da população. Além disso, percebe-se que o sistema adotado atualmente parece trazer mais prejuízos do que benefícios à saúde humana. É urgente, assim, reorganizar a forma como produzimos e acessamos a comida, e como nos relacionamos com o meio ambiente e com a alimentação, considerando sempre a intrínseca relação entre sistemas alimentares e a saúde global.

Referências completas:

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Environmental Health. Disponível em: https://www.who.int/health-topics/environmental-health#tab=tab_1. Acesso em: 20 set. 2021.

FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION. Status of the World’s Soil Resources. Disponível em: https://www.fao.org/3/i5199e/I5199E.pdf. Acesso em: 23 set. 2021.

FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION. Pollutants from agriculture a serious threat to world’s water. Disponível em: https://www.fao.org/news/story/en/item/1141534/icode/. Acesso em: 20 set. 2021.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Climate change and health. Disponível em: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/climate-change-and-health. Acesso em: 23 set. 2021.

OUR WORLD IN DATA. Global greenhouse gas emissions by sector. Disponível em: https://ourworldindata.org/emissions-by-sector. Acesso em: 23 set. 2021.

WALLACE, Robert. Big Farms Make Big Flu. Nova York: Monthly Review Press, 2016.

GÁMEZ, Luna. Agressão ao planeta aumentou risco de pandemia nas últimas cinco décadas. El País. Rio de Janeiro, p. 100-100. ago. 2021. Disponível em: https://brasil.elpais.com/ciencia/2021-08-18/agressao-ao-planeta-aumentou-risco-de-pandemias-nas-ultimas-cinco-decadas.html. Acesso em: 25 set. 2021.

FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION (org.). The state of food security and nutrition in the world 2021. 2021. Disponível em: https://www.fao.org/3/cb4474en/online/cb4474en.html#chapter-2_1. Acesso em: 30 set. 2021.

FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION (org.). Food Outlook: biannual report on global food markets. 2021. Disponível em: https://www.fao.org/3/cb4479en/cb4479en.pdf. Acesso em: 30 set. 2021.

MAGDOFF, Fred. Food as a Commodity. Monthly Review, v. 63, n. 8, jan. 2012. Disponível em: https://monthlyreview.org/2012/01/01/food-as-a-commodity/. Acesso em: 30 set. 2021.

BIRN, Anne-Emanuelle; PILLAY, Yogan; H.HOLTZ, Timothy. Textbook of Global Health. Nova York: Oxford University Press, 2017.

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Anna Beatriz Monteiro Vieira
2 anos atrás

Muito boa a sua reflexão, Marina! Ao ler o seu post, lembrei do documentário “Cameroon: From Africa’s Palms”, produzido por Nidhi Dutt e Daniel Boaden, o qual aborda o contexto relacionado à plantação de óleo de palma em Camarões, liderada pela empresa Herakles Farms, e o impacto de tal produção no país. De acordo com o vídeo, o óleo de palma representava para o Estado uma grande oportunidade de sair de um status de subdesenvolvido e “atrasado” e alcançar o patamar de uma economia de impacto mundial, uma vez que se tornaria capaz de exportar a commodity em grande quantidade e, assim, investir em diversas áreas para proporcionar uma melhor condição de vida para a população. No entanto, a situação implicou várias controvérsias ambientais, econômicas e sociais. O documentário é uma ilustração do seu argumento de que é essencial mudarmos a forma como os alimentos são produzidos, a fim de priorizar a saúde e o bem-estar de todos.

Marina Sujkowski Lima
2 anos atrás

Muito obrigada pela contribuição, Anna! É exatamente sob uma justificativa de acelerar o desenvolvimento que muitos países são submetidos à exploração de grandes multinacionais que desconsideram os impactos sociais, econômicos e ambientais para a população local – e a conexão de tudo isso com a deterioração da saúde humana. Certamente assistirei a esse documentário!

Last edited 2 anos atrás by Marina Sujkowski Lima