Desde o triunfo da Revolução, o desenvolvimento da saúde pública tem sido a grande prioridade do governo de Cuba: se em 1959 o país contava com apenas 6 mil médicos, concentrados em Havana e nas grandes cidades do país, hoje Cuba conta com cerca de 70 mil médicos e com uma cobertura total do território, incluindo as zonas rurais, tendo permitido uma melhoria impressionante do quadro geral de saúde do país (MADUREIRA, 2010). Para atingir este patamar, foi implantado um padrão de investimento quase exclusivamente por parte do Estado, tendo priorizado a formação de recursos humanos, em quantidade e qualidade, através da criação de uma rede de faculdades (atualmente 22). O Sistema de Saúde Cubano é claramente um dos motivos de orgulho e propaganda do regime da ilha, que enfrenta uma forte pressão internacional, poucos recursos e escassa infraestrutura.
Não se limitando à esfera interna, Cuba marca seu compromisso com a saúde através de diversas frentes de cooperação internacional. Em 1998, depois que o furacão Mitch atingiu a América Central e o Caribe, foi criada a Elam (Escuela Latinoamericana de Medicina) com o intuito de formar em Cuba os futuros médicos do mundo subdesenvolvido. Em troca do compromisso não obrigatório de fornecer serviços públicos de saúde em comunidades urbanas e rurais desfavorecidas, os estudantes recebem bolsa integral e uma pequena remuneração, não tendo dívidas com a instituição. Em 2012, Cuba formou 11 mil novos médicos, entre eles 5.315 são cubanos e 5.694 vêm de 59 países da América Latina, África, Ásia e até mesmo dos Estados Unidos (LAMRANI, 2012).
Outro exemplo da cooperação promovida por Cuba são as missões médicas humanitárias. Desde 1963 e o envio da primeira missão à Argélia, cerca de 132 mil médicos e outros profissionais da saúde trabalharam voluntariamente em 102 países (ROQUE, 2006). A título de exemplo temos a Brigada Henry Reeve, que é apontada como a mais importante da história médica cubana. Criada em 2005, tinha como principal objetivo fornecer serviços de saúde para os norte-americanos afetados pelo furacão Katrina. A administração Bush negou a ajuda, mas a brigada participou de outras grandes ações de auxílio em situações de catástrofe internacionais, entre elas o terremoto no Paquistão em 2005, o terremoto na Indonésia em 2006, o terremoto do Haiti em 2010, além da participação ativa na epidemia de ebola na África Ocidental em 2014 e na tempestade tropical Erika na Dominica em 2015.
Em julho de 2013, com o objetivo de combater a profunda escassez de médicos no país, sobretudo na Atenção Primária à Saúde (APS) foi lançado no Brasil o Programa Mais Médicos envolvendo três frentes estratégicas: ii) mais vagas e novos cursos de Medicina baseados em Diretrizes Curriculares revisadas; ii) investimentos na construção de Unidades Básicas de Saúde; iii) provimento de médicos brasileiros e estrangeiros em municípios com áreas de vulnerabilidade. A última frente do programa recebeu notoriamente maior visibilidade pública que as demais, e as controvérsias acerca dos médicos estrangeiros, principalmente cubanos, se agravaram ao longo dos anos culminando na saída de Cuba do programa em 2018. Segundo Havana, a saída deveu-se a referências diretas, depreciativas e ameaçadoras feitas pelo presidente eleito Jair Bolsonaro à presença dos médicos cubanos no Brasil.
Após esse episódio, muito se falou sobre o prejuízo bilionário da saída dos médicos cubanos para a ‘medicina de exportação’ de Cuba, descrita como um programa que teve início na década de 1960, cujo objetivo seria enviar pessoal médico cubano para o exterior, particularmente para a América Latina e África, em troca de ajuda financeira, créditos e
acordos comerciais. Muitos argumentam que os trabalhadores médicos seriam ‘o produto de exportação mais importante de Cuba’, país que tem suas relações comerciais impactadas pelo embargo imposto pelos Estados Unidos desde 1962.
É inegável que os programas de cooperação e as missões humanitárias cubanas são importantíssimos, visto que nenhuma outra nação, nem mesmo as mais desenvolvidas, promove semelhante cooperação humanitária ao redor do planeta. Os resultados desses programas também não deixam dúvidas. O Mais Médicos é um exemplo: segundo a
Confederação dos Municípios, entre os 1.575 Municípios atendidos possuíam somente médicos cubanos do programa prestando assistência a cerca de 28 milhões de pessoas (MATOSO, 2018).
Por outro lado, é preciso reconhecer que a formulação da política externa cubana se vale deste soft power em matéria de saúde como saída ao isolamento do bloqueio estadunidense. Ao estabelecer relações de solidariedade e cooperação com outros países do Sul Global, Cuba reforça laços políticos e diplomáticos, procurando formas alternativas de inserção nas dinâmicas internacionais. Estima-se que o envio de profissionais de saúde para o exterior responde por bilhões de dólares que Havana arrecada por ano com exportações de bens e serviços. Citando mais uma vez o programa Mais Médicos, um dos motivos de maior controvérsia quanto ao programa ocorreu quando 154 ações foram movidas na Justiça por 194 médicos cubanos que vieram ao Brasil pelo programa solicitando receber o valor integral do salário que, pelo acordo estabelecido no programa, era transferido ao governo cubano e repassado apenas parcialmente aos profissionais (DANTAS, 2017).
Para muitos a abordagem em matéria de saúde de Cuba é uma ‘Medicina de Exportação’. Para eles, a estratégia é imoral e se sustenta na exploração dos profissionais da saúde cubanos em outros países em troca de ajuda financeira, créditos e acordos comerciais. Para outros, a estratégia pode ser descrita como uma ‘Diplomacia Médica’, que promove a globalização da solidariedade através de missões humanitárias e programas de cooperação internacional. Estes argumentam que alguns países exportam commodities, outros, produtos industrializados, enquanto Cuba, que tem a maior relação de médicos por habitantes no mundo, exporta serviços de saúde. O presente artigo não busca esgotar a discussão ou tomar lados nesse debate, dada a complexidade do tema. O que podemos concluir, independente de posicionamentos críticos, é que a cooperação internacional promovida por Cuba tem resultados positivos e importantíssimos. Em um cenário em que esforços globais encontram-se cada vez mais escassos, como pudemos verificar na pandemia do COVID-19, Cuba demonstra esforços genuínos pela promoção da saúde em escala global.
Referências
DANTAS, Carolina. Mais Médicos: cubanos entram na Justiça por salário integral e direito de ficar no país. G1, 11 de outubro de 2017. Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/noticia/mais-medicos-cubanos-entram-na-justica-por-salario-integral-e-direito-de-ficar-no-pais.ghtml. Acesso em 04 de outubro de 2021.
LAMRANI, Salim. A. Cuba, a ilha da saúde, 29 de junho de 2012. Disponível em: https://operamundi.uol.com.br/opiniao/23324/cuba-a-ilha-da-saude. Acesso em 04 de outubro de 2021.
GOVERNO FEDERAL. Mais Médicos. Disponível em: http://maismedicos.gov.br/. Acesso em: 03 de outubro de 2021.
MADUREIRA, Pedro de Sousa Pizarro. Sistema de saúde cubano. 2010. Tese de Doutorado.
MATOSO, Filipe. Saída de Cuba do Mais Médicos afeta 28 milhões de pessoas, diz Confederação dos Municípios. G1, 15 de novembro de 2018. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2018/11/15/saida-de-cuba-do-mais-medicos-afeta-28-milhoes-de-pessoas-diz-confederacao-dos-municipios.ghtml. Acesso em 04 de outubro de
2021.
MÉDICOS SÃO O PRINCIPAL PRODUTO DE EXPORTAÇÃO DE CUBA. Veja, 23 de agosto de 2013. Disponível em: https://veja.abril.com.br/saude/medicos-sao-principal-produto-de-exportacao-de-cuba/. Acesso em: 03 de outubro de 2021.
MÉDICOS, A MAIOR MERCADORIA CUBANA. Superinteressante, 17 de fevereiro de Disponível em: https://super.abril.com.br/saude/medicos-a-maior-mercadoria-cubana/. Acesso em: 04 de outubro de 2021.
O MUNDO SECRETO DOS MÉDICOS QUE CUBA EXPORTA. BBC, 19 de maio de 2019. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-48302144. Acesso em: 03 de outubro de 2021.
PRIMERA, Maye. Los Médicos, La Materia Prima Exportable De Cuba. El País, 16 de maio de 2013. Disponível em:
https://elpais.com/internacional/2013/05/17/actualidad/1368753691_774019.html. Acesso em: 04 de outubro de 2021.
ROQUE, Felipe Pérez. Discurso del canciller de Cuba en la ONU. Bohemia Digital, v. 9, 2006.
TROTTE, Alyssa Ribeiro Perpeto. A Atuação Da Diplomacia Cubana Do Pós-59 À Pandemia Do Coronavírus. Revista Relações Exteriores. 3 de outubro de 2020. Disponível em: https://relacoesexteriores.com.br/a-atuacao-da-diplomacia-cubana-do-pos-59-a-pandemia-do-coronavirus/. Acesso em: 03 de outubro de 2021.
O artigo é extremamente interessante, sobretudo ao trazer as duas principais interpretações sobre a atuação da política externa cubana na área da saúde. O programa mais médicos, citado no texto, foi desenvolvido em 2013 durante o governo de Dilma Rousseff, e atuava por intermédio da Organização Pan Americana de Saúde (OPAS). Segundo o “maismédicos.gob.br”, após os dois primeiros anos do programa, 63 milhões de brasileiros passaram a possuir acesso à assistência de saúde próximo a suas residências. Como relatado no artigo, devido a controvérsias de cunho ideológico, o convênio com Cuba foi cessado em 2018. Bolsonaro, em sua campanha eleitoral, criticava arduamente a contratação de médicos cubanos. O então candidato acusava os profissionais de “formarem núcleos de guerrilha” no Brasil e ainda classificava a forma de contrato de cuba como análoga a escravidão. A intensão do governo era substituir o mais médicos por um novo projeto com foco em regiões afastadas e com profissionais brasileiros, ou que tenham tido seus diplomas revalidados no Brasil. Já no começo de 2020 (antes da pandemia), contudo, o governo falhou em colocar em voga o novo programa, devido a vagas não preenchidas e a desistência de substitutos. De acordo com o El Pais, em fevereiro de 2020 havia 757 vagas ainda ociosas. Diante desse cenário, o Governo optou por reincorporar médicos cubanos.
O papel de Cuba na cooperação internacional de saúde realmente não pode ser subestimado! Havana vem desde meados do século XX servindo como alternativa à cooperação Norte-Sul na área de saúde. Durante alguns períodos, como a década de 1990, se mostrava como essencialmente a única alternativa, contra um modelo que é muitas vezes problemático na forma verticalizada e pouco democrática com que une Centro e Periferia. Com um entendimento muito mais amplo em relação às necessidades e condições de saúde no Sul Global, Cuba soma muito ao sistema internacional de saúde – seja por meio do envio de médicos, pelo treinamento de novos ou pelo auxílio na estruturação de novos sistemas nacionais. Creio que esses argumentos estejam super bem demonstrados no seu texto, Ana!