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Mecanismos Internacionais de Punição ao Negacionismo em Saúde Pública, de Alice Bertoni

18 novembro 2021

Mecanismos Internacionais de Punição ao Negacionismo em Saúde Pública, de Alice Bertoni

Sob uma perspectiva de relações internacionais, o mundo é dividido por fronteiras. Cada país possui soberania o suficiente para determinação de seu sistema de governo, legislação, elaboração de políticas públicas e definição de sua relação com os demais países do mundo. As políticas referentes à saúde estão incluídas nos poderes dados pela soberania.

Nascer de um lado ou outro de uma linha imaginária pode determinar se uma pessoa terá acesso gratuito a um sistema de saúde ou se cada viagem ao hospital significará uma nova dívida; ou, em um âmbito de prevenção, se terá acesso à saneamento básico ou segurança alimentar apropriada. O acesso a maior parte dos elementos que definem a saúde um indivíduo, infelizmente, são advindos de uma loteria de nascimento.

No entanto, a pandemia de COVID-19 relembrou o mundo de uma nuance importante no debate sobre saúde pública: vírus como o COVID-19 não conhecem ou respeitam linhas imaginárias que são tão fundamentais no estabelecimento de nossa saúde cotidiana. Decisões equivocadas de líderes negacionistas, mais do que nunca, são capazes de afetar o bem estar até mesmo daqueles que vivem nos confins mais privilegiados de linhas imaginárias. O controle equivocado de um vírus é uma das principais formas pelas quais novas variantes mais potentes podem ser criadas, e isto foi precisamente o que aconteceu, por exemplo, no caso da variante de Manaus. Segundo reportagem do Poder 360 em abril de 2021, a não implementação de um programa de vigilância genômica estruturada foi uma das principais razões que contribuíram com o surgimento da variante que é até 2,4 vezes mais transmissível.

O surgimento de variantes do tipo não só é uma agressão contra a população que experiencia diretamente a omissão de líderes que deveriam zelar por sua saúde mas também uma agressão a outras populações que sequer são governadas por esses mesmos líderes, especialmente em um contexto globalizado de intensa interligação entre países. Esta circunstância tão delicada levanta, portanto, um debate: quem deve punir líderes por omissões relacionadas à saúde pública?

Diversos países, inclusive o Brasil, tipificam crimes contra a saúde pública em seus respectivos códigos penais. No entanto, sendo esta uma matéria de interesse internacional, diversas pessoas argumentam que ações de negligencia durante uma pandemia podem se enquadrar como crimes contra a humanidade. Este é, inclusive, um dos termos utilizados no Relatório Final da CPI da COVID-19, que argumenta que a submissão da população brasileira aos efeitos da pandemia de COVID-19 sob o argumento de gerar uma “imunidade de rebanho” e a promoção de tratamentos sem amparo científico para prevenção do COVID-19, poderia se enquadrar na interpretação do Estatuto de Roma, que define crime contra humanidade como a realização de “ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil”.

A inclusão da interpretação de crimes contra a saúde pública neste entendimento, sem dúvidas, seria um avanço tanto em termos de legislação internacional quanto também em termos simbólicos para criação de conscientização a respeito da importância da pauta. No entanto, não podemos esquecer das limitações que tribunais internacionais já possuem no status quo e como estas mesmas limitações poderiam ser traduzidas em um sentido amplo também para o campo da saúde global. O Tribunal Penal Internacional, por exemplo, vem recebendo sistemáticas acusações de racismo por proporcionalmente julgar muito mais casos de nações do sul global, como por exemplo de diversos países africanos, do que casos referentes à países do norte global. Inclusive, diversos países africanos chegaram a até mesmo abandonar o tribunal sob este argumento.

Dado que os países possuem soberania para decidir se estarão ou não em órgãos internacionais, é de se imaginar que os países mais prováveis a denunciar um tratado que permita a persecução de líderes por crimes contra a saúde pública sejam, justamente, aqueles países que possuem líderes com a maior possibilidade de fazê-lo.

De maneira similar, é razoável imaginar que os países que já possuem no status quo poder relevante de lobby nestes tribunais continuem a tê-lo em matérias de saúde e, provavelmente, continuem a não receber punições. Isto também significa que precisaríamos nos atentar à criação do precedente de estabelecimento de padrões extremamente ocidentalizados no que tange à mensuração de crime contra a saúde pública. Muitos países muitas vezes não possuem estrutura física suficiente para contenção de epidemias como malária e dengue. De maneira similar, outros países não possuem por exemplo economias digitalizadas o suficiente ou possibilidade de auxílios relevantes em casos que requiram lockdown. Nestes casos, a comunidade internacional precisa amadurecer um entendimento que vá além da punição per se, mas que leve em consideração a continuação de esforços para o estabelecimento de uma agenda global de saúde pública que leve em consideração as condições básicas para que os países em diversos estágios econômicos possam realizar enforcement de políticas sanitárias apropriadas. Não menos importante, precisamos garantir mecanismos efetivos de punição ao negacionismo – venha ele de qualquer lado das linhas imaginárias.

REFERÊNCIAS:

Is ignoring the pandemic a crime against humanity?. Vox. 26 de outubro de 2021. Disponível em <https://www.vox.com/22737145/bolsonaro-covid-19-crimes-against-humanity-icc>

Debandada de países africanos expõe tensões no Tribunal Penal Internacional. 26 de outubro de 2016. Conjur. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2016-out-26/paises-africanos-acusam-tpi-racismo-abandonam-tribunal>

Imunidade de rebanho e atraso de vacinas impulsionaram mortes, diz relatório. CNN Brasil. 19 de outubro de 2021. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/politica/imunidade-de-rebanho-e-atraso-de-vacinas-impulsionaram-mortes-diz-relatorio/>

Variante de Manaus do coronavírus é até 2,4 vezes mais transmissível, diz estudo. Poder 360. 16 de abril de 2021. Disponível em: https://www.politize.com.br/o-que-sao-crimes-contra-humanidade/

O que são crimes contra humanidade? Politize!. 27 de agosto de 2021. Disponível em https://www.politize.com.br/o-que-sao-crimes-contra-humanidade/.

MINUTA CONTENDO RESUMO DOS TRABALHOS DA CPI DA PANDEMIA ATÉ 17 DE OUTUBRO DE 2021. Disponível em <https://static.poder360.com.br/2021/10/Relatorio_CPI-da-Covid-19.out_.2021.pdf>

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