De Aristóteles a Marx e Engels, diferentes pensadores concordam em uma coisa: o ser humano é um ser social. A associação em grupos nos ajuda a sobreviver, mas muito além disso coisas como o afeto, o carinho, a troca de experiências e o cuidado, fazem parte de uma vida com mais plenitude, solidariedade e felicidade. A pandemia do coronavírus nos privou de pequenos apertos de mão, abraços, da presença física que faz muita diferença no dia a dia e especialmente em momentos delicados, como a internação. Em momentos como esses, ações para tornar a experiência mais suportável ganham espaço e a prática da humanização existe como meio de atingir esse fim.
O SUS descreve a humanização como uma “aposta ético-estético-política”. Ética porque conta com a atitude responsável de profissionais da saúde, usuários e gestores do serviço de saúde; estética porque tem relação direta com o modo pelo qual a saúde é produzida, além de evidenciar a subjetividade de cada sujeito; e é política porque está “associada à organização social e institucional das práticas de atenção e gestão na rede de saúde”.[1] Isso quer dizer que a prática de humanização na saúde segue os princípios do Sistema Único de Saúde: a universalização do acesso à saúde, a equidade para respeitar as necessidades particulares de cada pessoa e lidar com cada um da forma mais apropriada, e a integralidade, princípio que torna o SUS um serviço feito não apenas para tratar enfermidades, mas para atuar na prevenção de doenças, reabilitação, promoção de saúde e participação na elaboração de outras Políticas Públicas.[2]
No Brasil, o Ministério da Saúde montou o Plano Nacional de Humanização em 2003, para colocar em prática além dos princípios supracitados, questões organizativas do Sistema que envolvem regionalização, hierarquização (respeitando complexidades de cada serviço), descentralização e comando único e participação popular. O PNH é norteado pelo acolhimento adequado do paciente, por uma gestão que valoriza o trabalhador do SUS, pela defesa dos direitos do cidadão que utiliza o sistema, pela inclusão de diferentes profissionais da saúde para diagnósticos com múltiplas visões, além do contato com pacientes, assegurando autonomia e particularidades, e por um processo de ambiência, criando ambientes saudáveis, acolhedores e confortáveis.[3] A implementação da prática da humanização extrapola a visão da “doença” como uma relação de causa-efeito, que não leva em consideração aspectos psicológicos e sociais.[4]
No Hospital de Urgências de Sergipe Governador João Alves Filho, o projeto “Correio Afetivo” gera a troca de informações entre os profissionais e os familiares dos pacientes internados com a COVID-19, para construir uma “árvore da vida” com apelidos, fotos, gosto musical e coisas queridas dos pacientes. A comunicação inclui a família no processo de recuperação e muitos pacientes reagem positivamente, acordando lembrando de suas músicas preferidas ou de assuntos comentados pelos profissionais. Para a psicológa do Hospital, a iniciativa faz com que “as famílias se sintam acolhidas, parte do processo de hospitalização devido à ausência da visita diária. É importante, é humano.”[5]
Já em Ananindeua, no Pará, o Hospital Metropolitano criou uma ação parecida no ano passado: música ambiente, mensagens de apoio em murais, atendimento psicólogo ajudam a motivar a equipe de atendimento e acolher pacientes e acompanhantes. [6] Para a equipe Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig), usar a humanização ajuda a construir confiança entre profissionais e usuários, o que torna esse últimos mais receptivos ao tratamento gerando resultados mais positivos no cuidado.[7] Práticas humanizadas reúnem elogios de colaboradores, pacientes recuperados e suas famílias, além de reforçar princípios como a equidade, respeitando as particularidades dos atendidos e a integralidade com tratamentos multidisciplinares envolvendo médicos e psicólogos.
Apesar dos impactos positivos observados com a implementação de iniciativas de humanizar áreas como tratamento de COVID-19 ou a realização de partos, ainda existem desafios sobre a implementação da prática de maneira geral. Como uma “aposta política”, a humanização precisa ser concretamente efetiva, enquanto segue suas diretrizes previstas, sustenta seus princípios e os do SUS, enquanto garante a participação ativa de gestores, da população e dos profissionais de saúde. Esse últimos representam uma das principais preocupações para o uso de práticas humanizadas: é necessário que desde suas graduações eles sejam preparados para atendimentos humanizados[8]. A Humanização prevê também a valorização dos profissionais, o que configura necessidade de um ambiente saudável de trabalho e recursos humanos, insumos e ferramentas suficientes para garantir um bom desempenho, do contrário, os profissionais se sentem impotentes e frustrados, prejudicando a qualidade do serviço performado.[9]Durante a crise do coronavírus, em agosto de 2020, cerca de 70% dos profissionais de saúde não receberam preparação para lidar com a crise e apenas metade deles receberam EPIs necessários.[10]
A falta de recursos e consequente impotência do profissional influencia também a percepção do usuário do SUS. Em uma pesquisa do Datafolha, 62% dos entrevistados acreditavam que o SUS não tinha gestores bem preparados e a falta de recursos financeiros foi apontada como maior problema do sistema. Apesar desses problemas não se limitarem às práticas de humanização e atingirem todas as áreas do sistema de saúde, a interação profissional-paciente é central para humanizar processos, e a percepção negativa da população sobre o serviço de saúde pode também prejudicar a aceitação de diferentes tratamentos, a abertura a acompanhamentos diversos e enfim, o andamento da implementação da humanização de maneira efetiva. Usuários UTI adulto consideram interação e atenção da enfermagem mais significativa do que cuidados técnicos.[11]
O estabelecimento da humanização como prática cotidiana e efetiva envolve a integração de recursos humanos, insumos materiais e políticas públicas com foco sempre na recuperação, promoção e manutenção da saúde do ser humano. Inúmeros exemplos, muitos deles destacados durante a pandemia do coronavírus mostram os resultados positivos de se utilizar um método que coloca os holofotes sobre o indivíduo, e não sobre a doença. Ainda assim, existem desafios a superar para que a Política Nacional de Humanização seja promovida mais assertivamente e para que a força do Sistema Único de Saúde como promotor da saúde seja potencializada e aumentada.
[1] PENSESUS. Humanização. Disponível em: https://pensesus.fiocruz.br/humanizacao
[2] MINISTÉRIO DE SAÚDE. Princípios do SUS. Disponível em: https://antigo.saude.gov.br/sistema-unico-de-saude/principios-do-sus
[3] PENSESUS. Política Nacional de Humanização. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_humanizacao_pnh_folheto.pdf
[4] CHIAIRI, B. M. e GOULART B. N. G. Humanização das práticas do profissional de saúde – contribuições para reflexão. Disponível em: https://www.scielosp.org/article/csc/2010.v15n1/255-268/
[5] SECRETARIA DE ESTADO DA SAÚDE DE SERGIPE. A humanização através do ‘Correio Afetivo’ na UTI Covid do Huse. Disponível em: https://www.saude.se.gov.br/a-humanizacao-atraves-do-correio-afetivo-na-uti-covid-do-huse/
[6] PRÓ-SAÚDE. A humanização em tempo de pandemia. Disponível em: https://www.prosaude.org.br/noticias/a-humanizacao-em-tempo-de-pandemia/
[7] FUNDAÇÃO HOSPITALAR DO ESTADO DE MINAS GERAIS. Humanização traz resultados positivos na assistência à saúde. Disponível em: http://www.fhemig.mg.gov.br/noticias/2086-humanizacao-traz-resultados-positivos-na-assistencia-a-saude
[8] Lenz AJ, Gernhardt A, Goulart BNG, Zimmer F, Rocha JG, Vilanova JR, Zwetsch LB, Wolf M. Acolhimento, humanização e fonoaudiologia relato de experiência em Unidade Básica de Saúde de Novo Hamburgo (RS). Boletim da Saúde 2006; 20(2):59-69.
[9] SPINDOLA, T.; SANTOS, R. S. O Trabalho na Enfermagem e seu Significado para as Profissionais. Rev Bras Enferm. v. 58, n. 2, p. 156-60, mar-abr., 2005.
[10] https://www.comciencia.br/sete-em-cada-dez-profissionais-de-saude-publica-nao-se-sente-preparado-para-lidar-com-a-pandemia/
[11] MATSUDA, Laura Misue; SILVA, Neuza; TISOLIN, Ana Maria. Humanização da assistência de enfermagem: estudo com clientes no período pós-internação de uma UTI-adulto. Acta Scientiarum: Health Science, Maringá, v. 25, n. 2, p. 163-170, jul./dez.2003.
Muito bacana seu texto, Ka! Não conhecia essas iniciativas; dá um reconforto saber que essas atitudes existem em meio aos escândalos desumanizadores dos planos de saúde privados. É bem nítido como essa humanização pode transformar um tratamento desde o diagnóstico. Falei um pouco disso em um dos meus posts, sobre como o machismo, por exemplo, pode prejudicar que mulheres tenham o cuidado adequado – isso em muito se relaciona com essa objetificação do ser, de uma medicina fria e impessoal. Parabéns pelo post!