No filantrocapitalismo os modos de perpetuação da acumulação de capital não se alteram e continuam se baseando na dominação e subjugação dos povos assim como quando suas elites atuam do outro lado, enquanto empresariado e empregadores espoliadores da classe trabalhadora e de recursos naturais. Do lado “luz” da força, porém escondidos por detrás de um verniz social mundificam suas consciências por intermédio de uma caridade mercadológica e de quebra obsequiam-se com isenções fiscais ou até mesmo com recursos públicos, quando se trata de programas internacionais de desenvolvimento (DENTICO, 2020), ganhando ao final uma estrela a mais em sua lista de atos para uma boa reputação de elite influenciadora social e benemérita.
Seria esta mais uma manobra para acumular mais capital, “devolvendo” para a sociedade parte de seus ganhos angariados às custas de seus assalariados e da natureza dantes usurpados? O calcanhar de Aquiles do filantrocapitalismo é sua lógica de investimento que não considera as demandas do receptor do benefício mas obedece uma lógica de mercado, buscando o lucro e atendendo as necessidades e vontades do doador, que podem ser e frequentemente são diametralmente opostas às necessidades das pessoas que são alvo das ações desta modalidade de filantropia, perpetuando e aprofundando assim as desigualdades sociais existentes nos territórios assistidos.
Segundo Callahan (2017), uma das representantes do filantrocapitalismo, a Fundação Bill e Melinda Gates (FBMG), incentivadora de privatizações, procura constituir normas para promover a saúde considerando as falas relacionadas aos direitos humanos fundamentais. Esse enfoque da FBMG está calcado em métodos da área econômica, apoiados na redução de riscos (apud BIRN e Richter, 2018), que agora percorrem o campo da Saúde Pública global. Tais conjunturas resultam em uma forte atuação do setor privado, e sem fins lucrativos, a respeito das atividades globais de saúde e debilitam os limites entre o público e privado, atuando como uma grave ameaça para a governança global democrática da saúde e para a livre produção de ciência.
De acordo com Curtis (2016), a FBMG, é, certamente, a maior organização filantrópica ligada à Saúde Global e a maior fundação de caridade do planeta. A FBMG emprega mais recursos financeiros na Saúde Global do que qualquer governo, com exceção dos Estados Unidos (apud BIRN e Richter, 2018). A doação da Fundação, realizada em 2015, foi de U$ 39,6 bilhões, incluindo U$ 17 bilhões doados pelo megainvestidor estadunidense Warren Buffett, o solitário investidor da FBMG. Como nos indica Chorev (2012), no começo da década de 1990, menos da metade do orçamento da OMS foi recolhida dos países-membros. Atualmente, aproximadamente 80% do orçamento da Organização vem de doadores que definem como seus subsídios devem ser aplicados (apud BIRN e Richter, 2018).
Um dos objetivos fundamentais da FBMG é o fornecimento e desenvolvimento de vacinas. No ano de 2010, a Fundação conferiu U$ 10 bilhões para desempenhar mais de dez anos de pesquisa, desenvolvimento e entrega de vacinas. Para Birn, Pillay e Holtz (2017), mesmo as vacinas sendo significativos e eficazes instrumentos de Saúde Pública, evidências históricas atestam que a mortalidade decai sobretudo devido à melhoria das condições de vida e de trabalho, o que incluindo acesso à água potável, saneamento e cuidados primários de saúde, são componentes que se encontram no contexto das lutas sociais e políticas mas não nas políticas de Fundações como a FBMG (apud BIRN e Richter, 2018).
Segundo Dentico (2020), com um poder capaz de suplantar até mesmo a esfera política, a concentração da riqueza nas mãos de pouquíssimas pessoas é também uma garantia de manutenção do poder financeiro, e o filantrocapitalismo, por natureza e por cultura, não se ocupa com a democracia, no máximo usa o poder do dinheiro para desviá-la e neutralizá-la. Em um campo sem regras, na filantropia hegemônica ocorrem ao mesmo tempo um efeito da desregulamentação da economia e das finanças e, portanto, um sintoma de um sistema capitalista geralmente inadequado e indisponível para redistribuir as riquezas.
Mas se o líquido amniótico do filantrocapitalismo é a desigualdade, como afirma a jornalista, especialista em cooperação internacional e saúde global Nicoletta Dentico, a filantropia progressista é o caldo gerador de provocações que possibilitam soluções alternativas para a transição a um novo padrão em que pessoas não sejam tratadas como beneficiários ou recipientes, nem desperdicem sua potência para a construção das suas realidades ou sejam tratadas como peças de um jogo, alocadas conforme os desejos dos doadores. A filantropia progressista se posta como agente de uma mudança necessária, colocando no centro da discussão aqueles que serão não somente beneficiados pelas ações geradas pelos doadores, mas também considerados como atores, verdadeiros agentes da ação. Considerando as demandas dos receptores genuinamente, os doadores os convidam para participar e construir sua lógica de alocação de recursos com a finalidade de atingir os objetivos da comunidade, todos eles ligados à justiça social, tais como alimentação, saúde, moradia, saneamento básico, educação etc.
Para Furtado (2013), a filantropia progressista critica a narrativa mítica do paradigma do desenvolvimento e seu discurso de uma linearidade evolutiva (apud SILVA e OLIVEN, 2020). Assinalando o caráter predatório do atual sistema produtivo e a inviabilidade de, através dele, alcançar o crescimento econômico contínuo e sustentável com a universalização dos padrões de consumo dos países considerados desenvolvidos. Essa ideologia de uma modernização universal, que na prática não tem como se viabilizar, frequentemente submete populações inteiras à degradação de seus modos de vida e do meio físico.
Block (2012), ao tratar das alternativas democráticas a um sistema neoliberal, indica haver “alternativa possível para o cenário em que a insustentabilidade do liberalismo de mercado acarreta crises econômicas e o ressurgimento do autoritarismo e de regimes agressivos” (apud SILVA e OLIVEN, 2020). Logo, a alternativa seria o engajamento de “pessoas comuns” em “esforço solidário para subordinar a economia à política democrática e à reconstrução da economia global, com base na cooperação internacional”.
Assim, a busca por uma sociedade mais equânime, coletiva e justa é realizada através do financiamento de projetos de base de ativistas e movimentos sociais dos territórios. Considerando a autonomia e autodeterminação dos povos e comunidades para a construção do seu modelo de desenvolvimento baseados em seus modos de vida, cultura, saberes e imaginários. Fomentam discussões para que seus projetos sejam sustentáveis nas formas econômica e ambiental, promovendo a recuperação de áreas degradadas, agricultura comunitária, respeitando as liberdades individuais de cada ator em matérias distintas como religião, sexualidade, política e expressão.
A prática da filantropia sem dúvida é uma linha de atuação que busca atender a uma provocação moral que incomoda a muitos, que é a ocorrência da discrepância abissal e intencional de renda entre seres humanos. Ao meditar sobre como queremos que nosso futuro comum se dê, devemos nos importar em buscar a redução dessas desigualdades de modo a incentivar a elevação da consciência de nossa humanidade aos mais altos ideais de liberdade e convivência entre todos de forma digna e pacífica e harmoniosa.
Referências:
Birn; Richter (2018). Filantropo-capitalismo estadunidense e a agenda da saúde global: as fundações Rockefeller e Gates, passado e presente. Ágora, [S.l.], v. 20, n. 2, p. 27-39. Disponível em: <https://online.unisc.br/seer/index.php/agora/article/view/12366/7519>. Acesso em: 17 de outubro de 2021.
Dentico, Nicoletta. O líquido amniótico do filantrocapitalismo é a desigualdade. [Entrevista concedida a Paolo Mieli, publicada por Confini 22-11-2020, traduzido por Moisés Sbardelotto]. Instituto Humano Unisinos, São Leopoldo, RS. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/604886-o-liquido-amniotico-do-filantrocapitalismo-e-a-desigualdade-entrevista-com-nicoletta-dentico>. Acesso em: 20 de outubro de 2021.
Nunes, J. (2020). A pandemia de COVID-19: securitização, crise neoliberal e a vulnerabilização global. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 5, e00063120. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/0102-311X00063120>. Acesso em: 17 de outubro de 2021.
Silva, P. e Oliven, R. (2020). Filantrocapitalismo versus filantropia para a justiça social: um debate norte-americano sobre como lidar com a pobreza. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1678-49442020v26n1a204>. Acesso em: 20 de outubro de 2021.