“Omolú mandou a bexiga negra para a cidade. Mas lá
em cima os homens ricos se vacinaram e Omolú era uma
deusa das florestas da África, não sabia destas coisas de
vacina. E a varíola desceu para a cidade dos pobres e
botou gente doente, botou negro cheio de chaga
em cima da cama” (Capitães da Areia, p. 187)
É assim que Jorge Amado, em sua obra Capitães da Areia, descreve a chegada da epidemia de bexiga – ou varíola – na cidade de Salvador, uma das passagens que mais me tocam na obra. Em meio a sua narrativa que conta a história miserável das crianças abandonadas do trapiche, o autor desvela os pontos de encontro entre pobreza e saúde, e também entre literatura e realidade. Durante nossas aulas de saúde global, em que discutimos como a saúde vai muito além de questões médicas e “biológicas”, não pude deixar de pensar na forma como a epidemia de varíola acomete a cidade baixa e sua população – preta, pobre e vulnerável – na ficção, e como se assemelha às epidemias e pandemias que vivemos hoje.
Em Capitães da Areia, Amado narra a vida de um grupo de crianças e adolescentes em situação de rua, abandonados pela família, pelo Estado, pela sociedade. Lutando para sobreviver num ambiente hostil, são todos expostos incansavelmente à violência e à morte, e vivenciam a chegada da tão temida varíola, chamada bexiga ou alastrim, entre os seus. Primeiro, assistem a adultos padecerem da doença. Depois, o menino Almiro é a vítima, amedrontando todos que compartilham sua moradia, o trapiche. O autor ressalta: os ricos, da cidadde alta, foram vacinados e se recuperam com mais facilidade. As crianças e todos os que circundam esse universo sofrem com mais um abandono, sem vacina, meios de prevenção, acesso à saúde, ou qualquer outro cuidado. Morrem e são embaladas em sacos e despejadas na vala comum mais próxima.
Fora das páginas de Amado, tratando de saúde global, a realidade é semelhante. Na epidemia de zika vírus, que atingiu o Brasil entre 2015 e 2016, oito em cada dez bebês (Géledes, 2016) com síndrome microencefálica tinham mães negras. Durante a epidemia de ebola, os países mais atingidos e com mais elevado grau de mortalidade foram países africanos de população majoritariamente negra e de baixa renda – vale lembrar que o ebola só recebeu verdadeira atenção internacional quando chegou à Europa. No caso mais recente, a pandemia de COVID-19, pessoas indígenas e negras têm duas vezes mais chance (CDC, 2020) de chegar ao óbito por conta do vírus nos Estados Unidos. No Brasil, de acordo com um estudo realizado em São Paulo, a taxa de mortalidade também é maior (Brasil de Fato, 2021) entre pessoas negras e indígenas.
Assim como no romance, essas estatísticas não acontecem por acaso, seja a nível global ou na existência de emergências de saúde pública dentro de um país. Birn, Pillay e Holtz (2016) apresentam uma abordagem da economia política para a saúde e doenças, as quais seriam produzidas por estruturas sociais, políticas e econômicas. Doenças como diarréias, doenças tropiciais negligenciadas (malária, dengue, etc.) são resultado de privações e da situação de marginalização de certos grupos de pessoas. Já epidemias transnacionais, como o SARS, o HIV e o ebola, estão profundamente ligadas a padrões econômicos e sociais emergentes no mundo. Em Capitães da Areia, a varíola dizima a população preta e pobre da Bahia por, além de não terem acesso à vacina (lembrando que o SUS ainda não existia), estarem sujeitos a condições precárias e insalubres de vida, viverem aglomerados sem acesso a saneamento básico, sem conhecimento nem condições de se prevenir da doença. Nas epidemias reais, o cenário não muda. Usando como exemplo o coronavírus, a fase neoliberal do capitalismo global pela qual passamos enfraqueceu os sistemas de saúde públicos, empobreceu as populações e aprofundou desigualdades. O resultado disso já conhecemos.
Aprofundando ainda mais esse debate, há autores que apontam não apenas uma forte relação entre estruturas sociais e econômicas e a saúde, mas a intencionalidade de certas políticas e ausências como forma de apartheid sanitário, de eliminação de determinados grupos sociais ou étnico-raciais, de negligência consciente. Sobre o ebola, João Nunes (2016) observa a negligência e o apagamento da doença pela governança da saúde global, impedindo que esse problema, enfrentado principalmente por populações pobres e desprivilegiadas, fosse resolvido. A resposta dada por muitos países à COVID-19, chamada de “neoliberalismo epidemiológico” (FREY, 2020), cuja premissa era deixar que a doença se resolvesse sozinha a custo de milhares de vidas de pessoas mais vulneráveis, sem mencionar o apartheid sanitário vivido em países do Sul Global sem acesso às vacinas, também são claros exemplos. O romance de Amado escancara as desigualdades sanitárias que podem ser interpretadas como projeto de extermínio e eliminação de corpos marginais e indesejáveis. Por esse viés, nem todas as vidas valem o mesmo.
Como posto por Achille Mbembe (2020) sobre a pandemia de COVID-19, precisamos entender que respirar não é apenas um processo biológico, mas um direito universal de existência. Logo, não será mais possível delegar a morte a outros e escolher quem morre. Precisamos lutar pelo direito à respiração e à vida dos meninos do trapiche, das mães do zika, dos países africanos assolados pelo ebola, dos sufocados pela COVID-19. Também compreender que não basta uma apenas abordagem médica e biológica da saúde global, mas é necessário considerar as condições de existência de populações vulneráveis e as estruturas sociais e econômicas que as impedem de ter vidas dignas e saudáveis, e assim, finalmente, combater essas epidemias de miséria.
“E numa noite que os atabaques batiam nas macumbas,
numa noite de mistério da Bahia,
Omolú pulou na máquina da Leste Brasileira e
foi para o sertão de Joazeiro. A bexiga foi com
ela.” (Capitães da Areia, p. 210)
Referências bibliográficas
AMADO, Jorge. Capitães da Areia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
BIRN, Anne-Emanuelle; PILLAY, Yogan; H.HOLTZ, Timothy. Textbook of Global Health. Nova York: Oxford University Press, 2017.
FREY, Isabel. “Her immunity” is epidemiological neoliberalism. The Quarantimes, 2020. Disponível em: https://thequarantimes.wordpress.com/2020/03/19/herd-immunity-is-epidemiological-neoliberalism/. Acesso em: 3 nov. 2021.
MBEMBE, Achille. The Universal Right to Breathe. Critical Enquiry, Chicago, v. 2, n. 47, p. 59-62, jul. 2021. Disponível em: https://www.journals.uchicago.edu/doi/pdf/10.1086/711437. Acesso em: 5 nov. 2021.
NUNES, João. Ebola and the production of neglect in global health, 2016. Third World Quarterly, 37:3, 542-556, DOI: 10.1080/01436597.2015.1124724.