Emergências de Saúde Pública e Jogos Olímpicos, de Amanda Gonçalves Machado

13 outubro 2021

Emergências de Saúde Pública e Jogos Olímpicos, de Amanda Gonçalves Machado

Entre julho e agosto de 2021, após o adiamento histórico dos Jogos Olímpicos de 2020, Tókio foi palco do maior evento esportivo mundial em um cenário ainda marcado e assombrado pela pandemia de Covid-19. Epidemiologistas e cientistas de vários países alertaram para os riscos da realização do campeonato e, após falhas no controle de casos antes e durante os Jogos, denunciaram a falta de voz no processo decisório japonês, a não transparência do governo para com a situação da pandemia no país e, ainda, uma dita “tensão entre a política e ciência” – como aponta um documento assinado pelos pesquisadores Kazuki Shimizu e Elias Massalo, do departamento de Política de Saúde da London School of Economics and Political Science, e Haruka Sakamoto, da Universidade de Tóquio¹.

Em maio de 2021, a Associação de Praticantes Médicos de Tóquio enviou uma carta pedindo que as Olimpíadas fossem canceladas. Dentre os receios da comunidade médica e japonesa no geral, estavam o aumento da disseminação do vírus e a provocação de uma nova onda de Covid-19 com possível aparecimento de novas variantes, ao reunir em um único campeonato atletas de diferentes países². 

Apesar de atingir muito menos casos globalmente, a história que decorreu entre a Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII) de Zika Vírus e as Olimpíadas Rio 2016 tomaram um rumo muito parecido. Cientistas alertaram para o risco da realização do campeonato e não se sentiram ouvidos; alegaram falta de transparência do COI ao lidar com a real situação do Zika no país, além de irresponsabilidade ética e em matéria de saúde pública na forma de abordagem do vírus³. De forma semelhante, epidemiologistas assinaram, em 2016, uma carta ao COI e à OMS pedindo o adiamento dos Jogos Olímpicos ou alteração de sua sede para outra cidade, alertando para o claro aumento do risco de difusão da variedade brasileira do vírus⁴.

Em 2020, estimava-se que o cancelamento das Olimpíadas de Tókio poderia acarretar em até 75 bilhões de dólares em prejuízo ao país e ao Comitê Olímpico, além de deixar de atrair os esperados 40 milhões de turistas para o evento⁵. Para além do óbvio impacto econômico, a reputação do governo japonês, bem como do COI, seriam feridas com o cancelamento, acarretando em enormes custos políticos e de imagem⁶.

De forma semelhante, no caso dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, para além do “desperdício” do orçamento brasileiro na infraestrutura do campeonato e afastamento dos mais de 1 milhão de turistas, devemos lembrar também que as eleições municipais estavam para ser realizadas apenas dois meses após a realização do campeonato (ocorreram em outubro), sendo os possíveis custos políticos de mudança de calendário ou de local sede também elevados.

Em ambos os períodos de Jogos Olímpicos, efeitos políticos, econômicos e de imagem foram colocados à frente de dados e preocupações científicas para com as Emergências de Saúde em curso nos locais-sede. Apesar de níveis e meios de contaminação diferentes, tanto a epidemia de Zika quanto a pandemia de Covid-19 foram alvo de priorização de outros interesses que não o da saúde pública, ao passo em que o controle viral poderia impactar significativamente a economia e imagem política. Os dois períodos escancaram, mais uma vez, a necessidade de a Saúde Global ser tratada como um projeto estrutural e perene nos países, não devendo apenas receber atenção, planejamento e financiamento “em cima da hora” em resposta ao surgimento de Emergências de Saúde Pública. Espero que, com duas ESPIIs de exemplo só na última década, aprendamos a importância de um planejamento contínuo da saúde pública e busquemos evitar ou ao menos nos preparar efetivamente para as possíveis próximas epidemias. Que a saúde realmente seja colocada em primeiro lugar desde o início no futuro global.

Referências

  1. BBC News Brasil – Olimpíada de Tóquio 2020: falhas no combate à pandemia mancham imagem da ‘eficiência japonesa’. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-57949909 
  2. Época Negócios – Associação de médicos japoneses pede cancelamento dos Jogos Olímpicos de Tóquio. Disponível em: https://epocanegocios.globo.com/Mundo/noticia/2021/05/epoca-negocios-associacao-de-medicos-japoneses-pede-cancelamento-dos-jogos-olimpicos-de-toquio.html#:~:text=A%2066%20dias%20do%20evento,novo%20adiamento%20ou%20o%20cancelamento&text=Uma%20associa%C3%A7%C3%A3o%20japonesa%20de%20m%C3%A9dicos,da%20pandemia%20do%20novo%20coronav%C3%ADrus
  3. El País Brasil – OMS rechaça pedido de cientistas para adiar ou transferir Olimpíada do Rio por conta do Zika. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2016/05/27/internacional/1464381165_188107.html?rel=mas 
  4. El País Brasil – Jogos Olímpicos Rio 2016: “É preciso adiar a Olimpíada: o zika vírus se espalhará por vias insuspeitas”. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2016/05/29/internacional/1464545459_088495.html 
  5. Exame – O custo do cancelamento: Tóquio já estava pronta para a Olimpíada. Disponível em: https://exame.com/casual/o-custo-do-cancelamento-toquio-ja-estava-pronta-para-olimpiada/ 
  6. CNN Brasil – O que poderia acontecer se a Olimpíada de Tóquio fosse cancelada? Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/esporte/o-que-poderia-acontecer-se-a-olimpiada-de-toquio-fosse-cancelada/ 

VENTURA, Deisy et al. A rights-based approach to public health emergencies: The case of the ‘More Rights, Less Zika’campaign in Brazil. Global Public Health, p. 1-14, 2020. 

*Vídeo interessante sobre as controvérsias nas Olimpíadas de Tókio – BBC News Brasil: A controversa Olimpíada de Tóquio em números: https://youtu.be/xzOFFcZ3tLs 

1 1 voto
Article Rating
Inscrever-se
Notificar de
4 Comentários
mais antigos
mais recentes Mais votado
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários
Pedro Soares Priolli
2 anos atrás

Ótimo texto Amanda! Realmente é nítida a falta de importância dada por diversos atores decisórios na realização desses massivos eventos internacionais, tais atitudes apenas perpetuam a ignorância e falta de credibilidade dada à saúde humana. Não obstante, tivemos uma recente demonstração de validação da importância do respeito às medidas de saúde no meio esportivo, tal fato ocorreu pela suspensão do jogo entre Brasil e Argentina pelas Eliminatórias da Copa do Mundo. O jogo que se iniciou na Zona Leste de São Paulo foi efetivamente interrompido e suspenso graças a atuação pontual dos membros da Anvisa, estes identificaram que membros do time argentino não teriam cumprido a quarentena de 14 dias estabelecida para os jogadores quando chegaram ao país. Com isso, acredito que atitudes assim sejam importantes para a validação do risco que é a pandemia e o vírus em si, é uma pena, na ótica de saúde global, que um evento da magnitude das Olímpiadas tenha ocorrido nesse contexto de descaso à pandemia.

AMANDA GONÇALVES MACHADO
2 anos atrás
Responder para  Pedro Soares Priolli

Obrigada Pedro! E sobre o caso do jogo que você comentou entre o Brasil e a Argentina, também achei um acontecimento exemplar de como colocar a saúde em primeiro lugar ao se tratar de eventos esportivos – confesso que até fiquei um pouco chocada (de uma forma boa) com o ocorrido, tendo em vista as péssimas escolhas feitas pelas demais autoridades brasileiras quando se trata de levar a sério a pandemia.

Sonia de Castilho
2 anos atrás

Excelente texto, Amanda. Porém, infelizmente não consigo ser otimista como revela a sua conclusão. Nos dois exemplos citados (Jogos Olímpicos de 2016 e 2021), os eventos foram um sucesso, a despeito das ESPII. Assim, no futuro, em situações semelhantes, acredito que novamente interesses políticos, econômicos e mercadológicos sejam colocados à frente das preocupações com a saúde. Mas, claro, ainda resta algum otimismo (ínfimo!) e a esperança em que, daqui em diante, as instituições se preocupem em prever, planejar e se preparar para tais situações e emergências, ainda que em nome dos tais interesses.

AMANDA GONÇALVES MACHADO
2 anos atrás
Responder para  Sonia de Castilho

Obrigada Sonia! Honestamente, entendo a desesperança – mas quem sabe depois de um “baque” como o que a Covid deu e está dando no mundo não aprendamos a ter um pouco mais de apreço à vida e não à economia, política e etc não é mesmo? Sigo na torcida 🙂