A primeira vez que eu ouvi sobre a crise dos opióides foi pesquisando algo para assistir na Netflix. Na procura por algo que prendesse a minha atenção, encontrei o documentário “Prescrição Fatal”, que conta a história de um farmacêutico que, enquanto investiga a morte do filho, descobre uma esquema de venda de receitas médicas. Essas receitas eram o opióide OxyContin, fabricado pela Purdue Pharma.
No final da década de 90, a Purdue e outras farmacêuticas garantiram para a comunidade médica que os opióides poderiam ser utilizados de forma prolongada em pacientes com dores moderadas, ignorando o alto poder viciante da droga. Isso levou ao uso indevido da droga e a crescentes casos de overdose, gerando uma epidemia com mais de 500.000 mortos nos últimos 20 anos.
Os efeitos socioeconômicos desta epidemia e a inação do país mais rico do mundo em cuidar da sua população causam desconforto desde a primeira vez que ouvi sobre a crise, e foi com desconforto que assisti aos 08 episódios da série Dopesick. Lançada em outubro deste ano pelo streaming Star+, a série é baseada no livro de não ficção Dopesick: Dealers, Doctors and the Drug Company that Addicted America, de Beth Macy.
A série apresenta 03 fluxos narrativos: o médico de uma pequena comunidade de mineiros na Virgínia e seus pacientes; o DEA – órgão do Departamento de Justiça dos Estados Unidos encarregado pela repressão a narcóticos – e o “attorney general” do estado; e a família Sackler, controladora da fabricante do medicamento.
Vemos as movimentações na Purdue Pharma na década de 90, quando eles começam a pensar numa medicação apropriada para dores crônicas que pudesse ser aplicada para dores moderadas. Eles acreditam que há uma “epidemia do sofrimento” no país e que a comunidade médica estaria ignorando as dores crônicas que afligiam os americanos. Surge assim o OxyContin, o primeiro de vários opióides que serão prescritos de forma indiscriminada.
A falsa garantia de que menos de 01% dos usuários de OxyContin ficava dependente era reforçada no discurso de vendas dos representantes e nas propagandas do medicamento. A farmacêutica recomendava o remédio para dores comuns, como cefaleias e dores de dente, além de manipular gráficos que mostravam a liberação do medicamento na corrente sanguínea dos usuários.
Com o surgimento de distúrbios relacionados ao uso da droga, as forças de segurança começaram a investigar a distribuição e a regulação da droga. Comunidades inteiras estavam sofrendo os efeitos do vício em OxyContin e outros opioides: furtos e roubos aumentaram, assim como o desemprego, a prostituição, abandono de menores, e mortes por overdose. A série mostra os esforços das forças de segurança americanas no enfrentamento da crise, antecipando como a crise foi tratada do ponto de vista da securitização.
Nesse sentido, os protagonistas com poder de controle são os membros da polícia e justiça americanas, e não formuladores de políticas públicas voltadas à saúde. A demora em encarar a crise dos opióides como uma questão de saúde pública – as primeiras abordagens sob esse viés surgem somente em 2018 – é uma das críticas de especialistas em saúde, sobreviventes e familiares das vítimas da epidemia. Não considerar a crise, principalmente os casos de overdose, como uma emergência em saúde, custou a vida de muitos.
O início da distribuição do OxyContin aconteceu no estado da Virgínia Ocidental, Kentucky e Maine, com foco em regiões de populações de baixa escolaridade com tradição de trabalho intensivo. Esse público compreendido de mineiros, operários e demais trabalhadores braçais sofriam frequentes lesões decorrentes da sua função profissional e foram vistos pela Purdue Pharma como o principal mercado consumidor para o medicamento. O epicentro da crise acontecer em regiões pobres do país é um exemplo de como classe e distribuição de poder se relacionam com a saúde.
Uma cena emblemática da série é quando Richard Sackler, presidente da Purdue Pharma, diz que pretende que o OxyContin seja “the biggest drug in the world”. A dramatização de cenas e eventos é parte da produção televisiva e devemos ter em mente que essa fala talvez não tenha sido dita na realidade. Mas, ainda assim, a cena possui seu impacto ao mostrar como as corporações são anestesiadas pelo lucro. O papel da Food and Drug Administration (FDA), agência responsável pela autorização da venda do medicamento, mostra como as políticas e regulações são frequentemente enviesadas para favorecer interesses de corporações.
Acredito que a série é um bom exemplo da problematização de questões em saúde através da arte. O uso de cortes temporais paralelos e a apresentação de grupos diferentes de pessoas impactadas pela crise fornece uma visão ampla ao espectador que nunca teve contato com o tema. E o desconforto permanece, como deve ser, mas dessa vez aliviado pela momentânea ideia de que estamos vendo algo fictício.
Referências:
EL PAIS. Justiça dos EUA encerra litígio contra Purdue Pharma pela crise dos opióides. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/sociedade/2021-09-01/justica-dos-eua-encerra-litigio-contra-purdue-pharma-pela-crise-de-opioides.html>. Acessado em 14 nov. 2021.
FOLHA DE SÃO PAULO. Quatro farmacêuticas dos EUA concordam em pagar US$ 26 bi por crise de opioides. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/07/quatro-farmaceuticas-dos-eua-concordam-em-pagar-us-26-bi-por-crise-de-opioides.shtml>. Acessado em 13 nov. 2021.
NATIONAL INSTITUTE ON DRUG ABUSE. Opioid Overdose Crisis. Disponível em: <https://www.drugabuse.gov/drug-topics/opioids/opioid-overdose-crisis>. Acessado em 14 nov. 2021.
THE GUARDIAN. Dopesick review – the heinous truth behind America’s opioid emergency. Disponível em: <https://www.theguardian.com/tv-and-radio/2021/nov/12/dopesick-review-the-heinous-truth-behind-americas-opioid-emergency>. Acessado em 13 nov. 2021.
UNIFESP/EPM. Departamento de Psicobiologia. Opiáceos. Disponível em: <https://www2.unifesp.br/dpsicobio/drogas/opio.htm>. Acessado em 13. nov. 2021