Na aula de 14 de setembro, falávamos sobre os horrores da pandemia e sua cobertura pelos noticiários quando, em um comentário que pode ter passado despercebido para muitos, a professora Deisy disse ser curioso a existência de pessoas que conseguem assistir a filmes de terror, mas não aos dados da realidade. Escrevi sobre um tema parecido para a disciplina Relações Internacionais, Corpos e Afetos, da professora Rossana Reis, e esta situação engatilhou minha motivação em trazer a discussão para este blog também.
Um dos meus interesses tem sido análises sobre filmes, literatura e arte. Embora admiradora recente do gênero terror, em parte por causa das análises, acredito ser o que melhor traduz o momento de sua produção pela forma com a qual captura ansiedades sociais e medos de sua época. Afinal, quem procura assustar outros parte primeiro dos próprios temores.
Não ousaria explicar por que produzimos essas obras, mas compartilho a visão que mais me convenceu do porquê consumimos. A introdução do vídeo “Monsters in the Closet” estabelece que as experiências imersivas nos aterrorizam, mas nos colocamos em desconforto voluntariamente e sabemos que estamos seguros. Na vida real, situações de risco e desconforto (como pandemias ou realidades violentas) não são opcionais, e geralmente temos pouca garantia de nossa segurança.
Na matéria da Health.com “Why do so many people love horror movies?”, doutores em Psicologia estadunidenses elaboram que, mesmo que nosso cérebro entenda que está seguro, não consegue separar 100% a informação na tela como algo que não está realmente acontecendo, então os filmes estimulam a produção de hormônios como adrenalina e dopamina pela indução da situação de luta ou fuga. Ainda, a sensação de “vitória” ao final destes filmes e a diferenciação que fazemos entre atitudes que tomaríamos no lugar dos personagens nos fazem nos sentirmos bem. Finalmente, consideram exposição ao terror uma maneira controlada de desenvolver mecanismos de enfrentamento (coping mechanisms).
Enfatizo então o potencial do terror para entendermos o mundo à nossa volta. Estudar a história do gênero e subgêneros passa por estudar nossa história, do que tínhamos medo e como isso virou arte. Tomo liberdade para adaptar trechos do que produzi para a matéria da professora Rossana sobre este tema nos próximos parágrafos.
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Não faltam exemplos de representação dos medos ao longo do tempo: após a Segunda Guerra Mundial e a bomba atômica, houve filmes nos quais a radiação trazia para a humanidade inimigos implacáveis, ou nos quais elementos externos que ameaçavam a Terra eram invulneráveis a bombas nucleares. Estes enredos expressam medo em relação às consequências do uso da radioatividade e temor de alguma ameaça que não pudesse ser contida nem desta forma. Após o 11 de setembro, estouraram filmes com invasões e perseguições dos protagonistas em suas próprias casas por vilões indefinidos e aparentemente sem motivo.
Embora vilões de terror representem medos estabelecidos, meu foco está nos vampiros, criaturas hematófagas geralmente antropomorfizadas – mas não humanas. A noção de vampiro mais popularizada é baseada no conto The Vampyre de Polidori, amigo do poeta romântico britânico Lord Byron. O vampiro de Polidori parece ser inspirado (e é um eufemismo) em Byron, caracterizando o vampiro como um romântico byroniano, cujo modus operandi seria seduzir suas vítimas (homens e mulheres) para predar seu sangue.
Essa atmosfera (homo)erótica em torno do vampiro surge de maneira mais e menos explícita no cinema e na literatura. No clássico Carmilla, a trama envolve a vampira e a protagonista Laura nas várias adaptações, fica claro que a vampira inspira medo não só pela natureza sobrenatural e homicida, mas pela da implicação sáfica do enredo. Nos anos 1970 e 1980, outra alta de filmes com vampiros representando o mal é simultânea à epidemia de AIDS. Sangue e erotismo, pontos chave de histórias de vampiro, também são centrais no medo popular da doença, até então conferida às populações LGBT, sobretudo homens gays e bissexuais. Nestas histórias, aqueles que se envolviam com os vampiros eram levados ao envelhecimento, à infecção. Enquanto isso, a castidade era recompensada e aqueles que ousavam seguir acordo com a liberação sexual ou drogas sempre encontravam punição em destinos cruéis.
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A abordagem da epidemia publicamente levou a associação destes elementos com perigo, explicitamente ou não. Mas como ver estes medos em alegorias diferia de encarar a realidade? Isso perpassa inevitavelmente pelos conceitos “vidas choráveis” e “enquadramento” elaborados por Judith Butler em “Quadros de Guerra”.
Na vida real, dados da epidemia eram divulgados de maneira informativa com determinados enquadramentos, sobretudo associando doentes com certos comportamentos e nichos sociais (Outros em relação ao espectador). Os filmes trazem uma narrativa e individualidades dos personagens gerando simpatia a partir dos nomes e histórias. Estes enquadramentos embora permitam nuance também estabeleciam Outros ao literalmente desumanizar personagens, mesmo os individualizando. Suas vidas não seriam passíveis de luto.
Assim temos nas telonas fatos terríveis, mas ocorrendo a não-humanos ou não-reais, e os punindo pelos comportamentos, mas conferindo razão e história na qual encaixar temores. Já no mundo real, Outros representavam “ameaças” que poderiam afetar a todos, mesmo também não sendo passíveis de luto para uma maioria. Seria tolerável que a alteridade fosse produzida como distante do espectador, mas trazendo à tona seus intensos sentimentos e medos, enquanto nos noticiários não existia a segurança de que o problema não te alcançaria.
Me coloco à disposição para trocar materiais e mais ideias com quem se interesse pelo tema e, como, por exemplo, a desumanização dos personagens torna tolerável que tenhamos representatividade LGBT pioneira no cinema. Fico ansiosa para acompanhar como a pandemia impactará no terror, inspirado nas ansiedades do isolamento social, reencontro com a sociedade e contágios. Nos próximos anos devemos ver refletidos nossos medos atuais em arte.
Referências
A BISEXUAL History of Dracula. [S. l.: s. n.], 11/06/2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=U2nZVAryOU0&t=299s. Acesso em: 30 out. 2021
BUTLER, Judith (2015). Quadros de Guerra. Quando a vida é passível de luto? Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro. Introdução. Páginas 13-56
GRECO, Patti. Why Do So Many People Like Horror Movies? Six Reasons We Love Being Scared. Health.com, [S. l.], p. Mind and body, 13 out. 2020. Disponível em: https://www.health.com/mind-body/why-people-like-horror-movies. Acesso em: 31 out. 2021.
MONSTERS in the Closet – A History of LGBT Representation in Horror Cinema (Video essay). [S. l.: s. n.], 21/10/2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=4zPCM14-SCQ&t=1s. Acesso em: 30 out. 2021.
SOCIETY and Queer Horror. [S. l.: s. n.], 04/10/2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=M8Z1NjpdH1M&t=20s. Acesso em: 30 out. 2021.
As narrativas dos filmes de terror são conhecidas por se sustentar nas ansiedades sociais das épocas em que são feitas, por exemplo, filmes de horror estadunidenses do final dos anos 60 e 70 costumavam zombar e subverter o “sonho americano” vendido na década de 50. Contudo, seres monstruosos como vampiros, bruxas e outros sempre fizeram parte destas construções podendo trazer temáticas como medo do desconhecido, inquisições, limites da ética, etc. Com os vampiros, além da narrativa de sedução e punição da promiscuidade, temas como medo do estrangeiro (que coincidentemente se mudava após o início de uma série de assassinatos) ou do perigo que pode estar escondido a plena vista (disfarçado como um de “nós”) também revelavam a tendência de associar o outro a uma ameaça e algo a ser combatido. Como você levantou, a maneira como enquadramos os medos, ameaças e punições de forma a nos deixar mais confortáveis com o sofrimento do outro será ressignificada nessa pandemia e com certeza afetará a produção de narrativas de horror.