Divulgado inicialmente em 2017, o Global Statistics on Alcohol, Tobacco, and Illicit Drug Use: 2017 Status Report conclui que, somados globalmente, o tabagismo e o alcoolismo são responsáveis pela perda de dez vezes mais horas de vida humana saudável do que o consumo de drogas ilícitas anualmente. O relatório indicou ainda que em nenhuma região do mundo os efeitos negativos sociais concretos de drogas ilícitas superou aqueles de drogas culturalmente aceitas. Discutindo o potencial para dano de diferentes tipos de entorpecentes, o professor de medicina da USP Arthur Guerra de Andrade afirma que são diversos os fatores determinantes, grande parte de cunho individual: precocidade da primeira exposição, padrão de consumo, via de administração e predisposição à dependência; ou seja, determinar a priori o dano de determinada droga à saúde vai muito do conhecimento de seus efeitos possíveis.
Esta não é a primeira vez que pesquisas demonstram o alto perigo de drogas legalizadas em comparação com outras substâncias ilícitas, e mesmo aqui fica claro que o custo exacerbado em horas de vida saudáveis tem relação com a maior prevalência de uso e abuso de entorpecentes ilícitos. Os dados, entretanto, chamam a atenção para um questionamento relevante: se não a mortalidade e o potencial para dano (tanto para a pessoa como para os demais), o que determina a licitude dos diferentes tipos de droga ao redor do mundo?
O discurso proibicionista em relação a entorpecentes teve no Tratado da Haia sobre Ópio, em 1912, o seu primeiro expoente jurídico internacional. O século que se seguiu foi então marcado por dois movimentos contrários: a proliferação de proibições de produção, consumo e distribuição de substâncias psicoativas só é comparável em volume à quantidade de novas drogas que foram descobertas e popularizadas no mesmo período. Entre a comunidade de pesquisadores e sociólogos dedicados a estudar entorpecentes, prevalece o entendimento de que a manutenção da licitude de determinadas substâncias – como o álcool e o tabaco – se baseia unicamente na tradição e na história dessas drogas na sociedade moderna. Alguns exemplos esclarecem a questão da construção histórica da criminalização da droga a nível global.
Trazendo a discussão para a experiência estadunidense, personagem importante no tema da regulamentação de entorpecentes, é possível discernir na virada para o século XX o ponto-chave em que o discurso do “potencial para dano” começou a ganhar força superior a aquele da liberdade individual de se fazer o que bem entender com o próprio corpo. A era da Prohibition do álcool foi marcada por um esforço propagandista não pouco relevante, o que evidencia a ideia de que a viabilidade de licitude de uma droga está diretamente relacionada à sua percepção enquanto uma ameaça à saúde pelo grande público. O fracasso da experiência serve como exemplo para a comunidade internacional do arraigamento do álcool na cultura ocidental – o custo político de novas empreitadas a favor da proibição da substância seria alto demais. Associando o argumento do potencial para dano aos dados apresentados anteriormente, fica claro então que não há um método preciso para se calcular o dano potencial de qualquer matéria que esteja sendo regulada.
Seja pelo argumento de combate ao tráfico e ganhos fiscais do Estado, via regulamentação de um mercado ilegal, seja pelo reconhecimento do fracasso da guerra às drogas e, paralelamente, da abordagem proibicionista ou pelo entendimento de que a desinformação e o estigma decorrentes da criminalização e marginalização do usuario representam um risco para a saude publica, fato é que experiências de legalização e regulamentação de substâncias psicoativas continuarão a se tornar cada vez mais comuns. O objetivo deste artigo não foi o de argumentar em favor da regulamentação desta ou daquela substância, mas sim o de acrescentar uma camada de análise para os debates que invariavelmente se replicarão quando essa discussão chegar finalmente ao Brasil, pondo em cheque a validade do argumento do perigo de drogas hoje ilícitas.
Referências
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Marina, tema muito importante para discutirmos saúde, principalmente no que se refere a termos (como sociedade) double standards quando a algumas drogas em relação a outras, utilizando do discurso de saúde para refletir padrões de pensamento e interesses muito longe desse tópico. É praticamente impossível falar sobre esse tema e não comentar a relação intrínseca entre a ilicitude da maconha e o racismo em alguns países, sobretudo nos Estados Unidos. Essa realidade se reflete em leis desenhadas de forma a lesar alguns grupos sociais em relação a outros enquanto sob o pretexto de prezar pela segurança pública ou saúde. Para além de esse ter sido em muitos casos o contexto no qual a proibição surgiu, é notório ainda hoje como mesmo a aplicação da lei não é a mesma para todos; sabemos de que forma a polícia age em relação a mesma quantidade de drogas portadas por pessoas de diferentes cores de pele, e sabemos também como a mídia incorpora o racismo na transmissão destes casos. Dessa maneira, apenas vemos se agravar a incoerência jurídica e o racismo através das estruturas que prezam por manter-se no poder (mas não verdadeiramente por saúde).